Casos da Rua 16

Foto: Capa Jornal de Arapiraca
Foto: Roberto Baía

Nos idos dos anos 60, a municipalidade arapiraquense se debatia com um sério problema moral que atingia a rua 16 de Setembro, paralela à rua Estudante José de Oliveira Leite e bem próximo do Ginásio Nossa Senhora do Bom Conselho (hoje CBC): era o cabaré de Arapiraca, ou, como a sociedade chamava, o “meretrício”. Por toda a artéria, que vai da rua Boa Vista (na parte ladeirada) até a rua Paula Magalhães, as boates reluziam superlotadas, com frequentadores entrando e saindo ouvindo-se as músicas de seresteiros e apaixonados, como Anísio Silva, Orlando Dias, Carlos Alberto, Nelson Gonçalves, Núbia Lafaiete e tantos outros.

Durante o dia, porém, um inconveniente: muitas das moradoras dos diversos cabarés da rua Boa Vista se misturavam aos jovens estudantes do Ginásio Nossa Senhora do Bom Conselho. Uma mistura que não era bem aceita pela sociedade arapiraquense, que via seus filhos frequentarem o “meretrício”, fugindo das aulas vespertinas do ginásio.

Um exemplo surgido em Maceió, contudo, poderia ser seguido por Arapiraca. Lá, toda a área dos cabarés, situada no bairro de Jaraguá, foi desocupada, com as boates sendo deslocadas para um novo bairro, o Canaã. Foi uma ação enérgica do coronel, Adauto Gomes Barbosa, que era o Secretário de Segurança Pública do Estado durante parte do governo de Lamenha Filho.  O secretário geral da prefeitura de Arapiraca, Narcizo Lúcio, por determinação do prefeito João Lúcio da Silva, procurou o Secretário de Segurança Pública, com a mesma finalidade: transferir o cabaré da rua 16 para longe do centro de Arapiraca: o local escolhido foi o antigo campo de pouso de aviões, onde hoje está situado o bairro de Itapoã.

A prefeitura adquiriu as terras conhecidas como “campo da aviação” (hoje, entre as ruas Nossa Senhora da Salete e Amâncio Matias da Silva, no bairro Itapoã). Faltava convencer os proprietários das boates (cabarés) da rua 16.  A mudança se daria em comodato* (os terrenos sempre seriam do município). E assim foi feito.

A primeira boate a se instalar no novo local foi a Madrid, de propriedade do Bala (ex-jogador do ASA) e de Zé Macaco. Era o primeiro passo. Depois, com a ordem do coronel Adauto  Gomes de prender todos aqueles proprietários que resistissem  sair da rua 16 de Setembro, vieram:  “Selva de Pedra”, “Vila Som”, “Mar de Rosas”, “Night and Day” (de Ruy Baiano), “Selma”, “Bar do Chico”, “Sayonara”, “Nair”, “Ciça e Ciço”, “Maria Baixinha”, “Dorge”, “Tonho Inácio”, “Klausberg” (escrita assim mesmo), “Dona Jenésia” (sic), “Arcindo”, e outras menos falada. Reabrí-las, somente no “campo da aviação”.  

E a rua 16 de Setembro, pelo menos durante os anos 67/69, deixou de ser a rua dos cabarés. Surgia em Arapiraca, como que patrocinado pela prefeitura, um novo bairro, o bairro das “mulheres de vida fácil”, hoje o bairro Itapoã. 

(*Comodato – é o empréstimo gratuito de coisas fungíveis. Portanto, foram terrenos do município emprestados aos “donos” das boates dos antigos cabarés da rua 16 de Setembro para que saíssem do centro de Arapiraca. Documentos acerca desses comodatos devem estar nos arquivos da municipalidade).

“VIDA FÁCIL”

Menino pequeno, lá pelos fins dos anos 50, fiz minha primeira incursão nas casas das “mulheres de vida fácil” de Arapiraca, os cabarés da Rua 16 de Setembro, pertinho do Colégio Nossa Senhora do Bom Conselho (à época era Ginásio). Meu professor foi o mestre da alfaiataria Jurandir Braz.

Uma tarde, na garupa de uma bicicleta Monark, fui todo ancho conhecer aquilo de que tanto falavam maravilhas: as mulheres que traziam alegria e prazer para os homens. Sempre guiado pelo Jurandir cheguei trêmulo à Rua 16. Em uma das “tocas” (assim eram chamadas as casas daquela rua), que tinha como dona uma mulher alta, bonita, meia gasta pelo tempo e trabalho, fui apresentado como amigo de meu guia. Recebí uma garrafa de guaraná Antárctica, espumante, e a saboreava enquanto meu mestre tomava cerveja.

Estava todo prosa e ria por dentro, com minha presença no “templo” das deusas como bem chamava o professor Miguel Valeriano, na sua verve incorrigível. Era como se fosse minha entrada triunfal na vida adulta. Leitor de gibis de Rock Lane, Bill Elliot, Hopalong Cassidy, Zorro, Rim Tim Tim e outros, passava a ter meu primeiro contato com a vida mundana da Rua 16. E pelas mãos de Jurandir Braz, um profundo  conhecedor profundo daquela vida.

Lá pelas três horas da tarde, saímos da casa da bonita mulher e fomos até outra “toca”, eu e meu patrono. Essa, cheia de moças, louras, morenas, ruivas, bonitas e feias, gordas e magras.

                -Esse é o Ferrerinha!

A primeira vez que não aconteceu

Foto: divulgação

Era assim que me apresentava a todas as “meninas”. Bem acho, saboreando outra garrafa de guaraná eu me deslumbrava com aquele mundo novo, cheio de luzes, mulheres com pouca roupa, mesas e cadeiras.

Foi quando tudo aconteceu. Irrompendo porta a dentro surgiu um homem alvo, forte e alto. Era o deputado Claudenor Albuquerque acompanhado de mais de dez homens. De todo tipo. De um preto chamado  Zé Macaco ao Alabê, passando pelo Perigoso.

Ao lado do deputado, seu cunhado, Major Ataíde, homem de mais de 1,80.

Sentaram-se ao redor das mesas, pediram bebida e conversavam freneticamente. Foi aí que o deputado Claudenor Albuquerque, homem temido em Arapiraca e na região, falou:

                -Todo mundo nu. Não quero ninguém com roupa!

Meu mundo desmoronou. A minha satisfação, a minha alegria, o meu deslumbramento, tudo foi por água à baixo. Nu, eu que tinha vergonha de meus próprios pertences. “Oh, meu Deus, e agora!”, pensei.

Tremia todo. Ainda de calças curtas, olhava para meu protetor, o Jurandir Braz, com olhar de “pidão”.

                “Ajude-me, ajude-me”, gritava em silêncio.

Jurandir, sentindo minha aflição, dirigiu-se ao deputado e falou:

                -Claudenor, deixe o menino por fora. Ele vai embora, tá nervoso, falou.

                -Quem é ele, Jurandir? De quem é filho, perguntou o deputado

                -Olha, ele é filho de “seu” Odilon, o cunhado do Agnelo.

                -Ah, é dos Lira, né?

                – É, completou Jurandir Braz. Deixe o menino ir embora.

                O deputado olhou para os lados, pensou, pensou e resolveu me mandar ir embora.

                -Vai, meu filho, ainda não é sua vez, Vá crescer!

Foto: Arquivo

A porta se abriu como um passe de mágica e saí sem olhar para os lados. Fixei meu olhar para frente, saí daquele bar, daquela “toca” e desembalei na carreira até em casa. Parecia que eu voava. Só sentia o vento no meu rosto.

Arfando, cheguei em casa; despistei minha mãe, que queria saber o porque daquele cansaço, daquele suor por todo o corpo. Claro que não disse nada, pois só pensava em meu corpo nu ao lado daqueles homens.

Passei muito tempo para voltar e frequentar as “tocas” de Arapiraca.

*Do livro: Memórias de Um Quase Comunista

Fonte: Eli Mário e Manuel André

Produção Editorial: Roberto baía e Carlo Bandeira