A PAZ MORA AO LADO

Alguns meses atrás escrevi sobre a minha necessidade e disposição para correr riscos emocionais explorando minha escuridão e pondo ela à vista daqueles que generosamente leem o que publico. Chamei de jornada arriscada o roteiro que precisei trilhar para dar cabo dessa tarefa, porque como disse o poeta Thiago Mello tenho ‘um caminho de barro umedecido de dúvidas’, e a cada palavra escrita me perguntava se aquilo valeria a pena. 

Estava cheia de medos. Uma das razões para o receio se dá pelo que, por falta de uma expressão melhor, chamo de autonomia do texto. Enquanto ele não é publicado tenho a possibilidade de modificá-lo, mas depois ele passa a falar por si, e para cada leitor ele parece dizer algo diferente. As interpretações por vezes me surpreendem bastante e não são poucas as ocasiões que retorno ao texto para buscar nele o que os leitores encontraram. Mas fui acolhida pela benevolência de vocês e saí dessa experiência decidida a fazer mudanças, externas e internas.

A mudança externa veio mais rapidamente. Internamente ainda luto contra espaços escuros que precisam ser iluminados, mas ando com fé como Gilberto Gil e como ele penso que a fé não costuma falhar. Assim, apesar da ansiedade gerada pela consciência de que há algo em mim necessitado de luzes e de minhas dificuldades para acessar os interruptores corretos, além da série de contratempos que surgiu na mudança de casa, alguém na nova morada me acalma e me leva a lugares semelhantes aos que alcanço quando escuto uma boa música, quando leio poesias, romances, enfim quando estou diante de uma expressão artística. Não sei o seu nome. Nunca vi o seu rosto. Mas sei que a paz mora ao lado. 

Escuto sua voz quase todos os dias. Alguns dias tenho o prazer de ouvi-la duas vezes. A voz é linda, os diálogos são curtos e repetitivos. Nos finais das tardes a saída da trabalhadora me presenteia com “tchau babá, eu te amo”. E em resposta a paz ouve “tchau amor”. Até a babá desaparecer as palavras se repetem: “tchau babá, eu te amo”.- “Tchau amor”. Não tenho competência para levar vocês para onde essas vozes me levam, sequer consigo descrever o que sinto ao ouvi-las, mas posso lhes garantir que nestes momentos a paz está comigo. 

À noite, quando o trânsito diminui, o carro que recolhe o lixo entra na nossa rua. E nessa hora ouve-se várias vezes “tchau gari” e em resposta “tchau bebê”; “tchau gari” – “tchau bebê”. Não sei como explicar e não sei o porquê disso, mas nesses instantes invariavelmente abro um sorriso e paro o que estou fazendo para me nutrir da energia, que sinto vir em ondas e, como diz uma pessoa muito querida, me coloca em outra frequência. Em agradecimento me ponho a cantar Milton Nascimento para que o mundo seja acolhedor com esse ser divino que quase diariamente planta em mim serenidade. ‘Oh Deus, salve o oratório. Oh Deus, salve o oratório onde Deus fez a morada, oiá meu Deus. Onde Deus fez a morada, oiá’.

Sua doçura preencheu algum lugar sem luz, no meu interior. Mesmo nos dias em que o som daquela voz não ecoa, a lembrança dela me eleva. Ela já não se ausenta e chego a imaginá-la cantarolando Chico Buarque ‘quero ficar no teu corpo feito tatuagem que é pra te dar coragem pra seguir viagem quando a noite vem’. Nesse instante descubro que a paz que mora ao lado agora também habita em mim. 

Isso me fez refletir sobre como o alívio das nossas dores pode estar ao nosso lado, mas mergulhado nelas não conseguimos vê-lo.  Não estou falando de cura. Algumas dores certamente estarão conosco por muito tempo, talvez seja sentida durante toda a nossa vida. Falo de viver bem apesar delas. Para algumas pessoas, que parecem ter vindo moldadas para as lutas difíceis, isso já está claro. Estas pessoas têm um estoque interno de energia, que eu chamo de coragem. Para a maioria de nós, inclusive eu, buscar energias externas é a saída. Enxergá-las nos dá esperança. Apreendê-las nos dá sabedoria. Usá-las nos possibilita viver.

Com o tempo e explorando diariamente estas possibilidades talvez nos tornemos canais vivos de esperança e sabedoria e, quem sabe, possamos fazer aos outros o que esse bebê fez em mim. ‘Oh Deus, salve o oratório onde Deus fez a morada, oiá meu Deus’.