Enfim chegamos ao final de 2022! Foi uma jornada difícil. Abismos, que sequer sabíamos existirem, olharam tão despudoradamente para a maioria de nós, que a decadência parecia ser o nosso destino.
Resistimos e por isso talvez mereçamos um Natal de paz e um ano bem novinho “não apenas pintado de novo, remendado às carreiras, mas novo nas sementinhas do vir-a-ser; novo até no coração das coisas menos percebidas”, como diria Drummond.
E quão importante são as nossas escolhas, inclusive sobre as coisas menos percebidas, para alcançarmos a paz e promovermos as mudanças que farão do ano que vem um tempo verdadeiramente novo? Confesso que não sei. Como Manoel de Barros, “meu fado é o de não saber quase tudo. Sobre o nada eu tenho profundidades”, por isso uso as diversas artes como instrumento para diminuir minha nulidade.
E foi assistindo ao filme italiano Lazzaro felice, dirigido e roteirizado por Alice Rohrwacher, que me dei conta de quanto restrinjo o espaço da bondade desinteressada e, obriguei-me a reconhecê-la e reverenciá-la, sempre que com ela me deparar, daqui em diante.
No filme, o jovem Lazzaro é membro de uma numerosa família italiana que vive em situação análoga à escravidão, na plantação de fumo de uma marquesa. A ele cabe os trabalhos mais pesados sem que isso lhe garanta, mesmo entre os seus, algum reconhecimento. Não há espaço para Lazzaro nem quando adoece, ainda assim ele serve a todos.
Libertada do trabalho escravo, a família vai morar na periferia da cidade, e deixa Lazzaro sozinho na zona rural. Anos depois ele consegue encontrar os parentes, que agora sobrevivem praticando pequenos furtos. Apenas uma pessoa da família o reconhece, ainda que ele tenha permanecido exatamente como era, enquanto todos envelheceram. No fim, tratado como assaltante, Lazzaro é morto dentro de uma agência bancária, embora nada em seu comportamento justificasse tal reação.
A bondade é transparente, não quer ser mais do que é, e não envelhece, cravou Alice Rohrwacher, nesta película. Então por que não a vejo? Por que não creio nela? Por que acabo por matá-la?
Para tentar encontrar as respostas, opto por trilhar o caminho da velha, complexa e interminável discussão sobre a natureza humana. Somos lobos de nós mesmos e precisamos de um ente maior que proíba a expansão da nossa natureza predadora, como afirmava Hobbes? Ou aspectos, como o desejo de dominação, entendidos como naturais, decorrem do hábito e do aprendizado, como defendia Rousseau?
Se somos aquilo que Hobbes assegurava, é natural que a bondade não seja acolhida entre nós. Mas escolho a via indicada por Rousseau que advogava ser o amor de si a nossa única paixão natural e, a piedade ou compaixão uma tendência nas nossas relações.
O amor de si, segundo Rousseau, é responsável pela nossa preservação e também pelo amor que temos àqueles que nos protegem, sobretudo nos primeiros anos de vida. Mas se engana quem entende ser esse amor aquilo que conhecemos como amor próprio. Rousseau explica que o amor de si se alegra pela satisfação das nossas reais necessidades e que o homem bom precisa de muito pouco. Desse amor derivam as nossas paixões afetuosas.
Já o amor próprio seria a degeneração do amor de si. O homem rico em amor próprio exige que os outros o prefiram, como ele se prefere, originando as paixões calculadas e desejos pelas futilidades. Se o amor de si mantém o homem livre, o amor próprio, torna-o prisioneiro dos padrões impostos pela sociedade. O homem, preso às convenções sociais, perde a sua autenticidade e a capacidade natural de sentir piedade ou compaixão. E nesse cenário também não há lugar para a bondade desinteressada.
Mas Rousseau defende que não sendo determinadamente bons ou maus, podemos ser educados a fazer uso das nossas faculdades naturais para preservar a nossa liberdade em relação ao que nos é imposto pela sociedade, expandindo a nossa capacidade de sentir as dores alheias e nos vermos como iguais.
Como também podemos ser levados a nos aprisionar às convenções sociais que nos corromperá e nos guiará para uma constante disputa por recursos além do necessário para a nossa sobrevivência, que nos tornará, usando a expressão de Hobbes, ‘homem lobo do homem’.
Portanto, se não vejo a bondade quando ela se apresenta; desconfio dela e insisto, ainda que inconscientemente, em matá-la, estou presa a valores sociais que me impedem de ser boa, e como disse Drummond em sua Receita de Ano Novo “para ganhar um Ano Novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre”. Vamos despertá-lo?