Preparava-me para falar dos mil tons de saudades com os quais se vestirão os palcos com a despedida do artista que ‘com a roupa encharcada e a alma repleta de chão’ foi ao encontro do povo, onde quer que ele estivesse, porque acreditava que esse era o caminho que o levaria ao sol. Sol que gentilmente divide conosco, ainda hoje, aquecendo nossas almas e iluminando nossos dias cada vez que entoa uma canção. Mas não pude desviar meus olhos do abismo que insistentemente se faz presente entre nós.
Queria falar da minha gratidão ao Milton Nascimento por tudo que ele fez, faz e ainda fará pela arte. Dizer como sou feliz de ter vivido na mesma época, de ter nascido no mesmo país e de falar a mesma língua que ele. Gostaria de, ainda que desafinada, cantar ‘contra tantos mandatos do ódio, Tu nos trazes a lei do amor. Frente a tanta mentira Tu és a Verdade, Senhor’, trecho de Aleluiá, mas o abismo olhou despudoradamente para mim.
Asfixiada pela dor de ver mais um brasileiro ser condenado à morte pelo Estado, sem julgamento, numa câmara de gás, não pude deixar de pensar em Travessia e nos versos ‘forte eu sou mas não tem jeito, hoje tenho que chorar’ por Genivaldo de Jesus Santos que teve a sua vida tragada pela violência de agentes estatais. E eu, que quase nunca me deixo levar por ideias e afetos alheios, encontro-me lutando para não ser sugada pelo abismo onde atuam os criminosos, porque isso me assemelharia a eles.
Talvez já seja tarde demais. Mergulhada na desumanidade da cena de tortura, miro o antro onde se alojam os covardes e desejo com todas as minhas forças que eles sejam alvos de dores ainda mais cruéis do que as que causaram. Torço para que todos os seus dias sejam de agonia e medo. Faço isso livre de preocupação com os julgamentos morais, porque faz tempo que aprendi com Nietzsche que esse julgar é a vingança preferida dos espiritualmente limitados. É a perfeita ocasião de se mostrarem refinados. E é fato que sempre teremos as aparências contra nós, todavia, conhecemos a fundo esses julgadores e a sua moralidade não nos alcança.
Entretanto, o acordar de sentimentos que habitam em mim e que admito não serem educáveis, mas conscientemente asfixiados sempre que despertados, assustou-me, então recorri a Milton e o escutei cantar Chico Buarque: ‘Pai afasta de mim esse cálice de vinho tinto de sangue’. Tomei como meus os versos da canção que falam de lançar um grito desumano para que os indignados escutem e abandonem a posição de espectadores. Desçam das arquibancadas porque os monstros estão emergindo livremente, sem a nossa oposição.
O caminho sugerido para buscar a saída do abismo no qual desejam nos prender é pavimentado pelo amor à vida e às artes e pela crença nas virtudes humanas, o que Nietzsche diz ser nossa boa consciência. “Quais os grupos de sensações que no interior de uma alma mais rapidamente despertam, tomam a palavra, dão as ordens, é isso que decide sobre a completa hierarquia de seus valores, é isso que determina afinal a sua tábua de bens”.
Resgatada da confusão mental que as imagens de Jesus torturado provocaram em mim e claramente diferenciada dos torturadores pela minha tábua de bens, lembro-lhes que a marca Maria Maria por nós herdada ‘possui a estranha mania de ter fé na vida’. Essa fé, no entanto, não é ingênua. Ela reconhece os perigos que a circunda, sabe dos riscos a que está submetida sua própria existência e da necessidade de lutar por ela, preservando seus valores. ‘Nada a temer senão o correr da luta. Nada a fazer senão esquecer o medo. Abrir o peito à força, numa procura. Fugir às armadilhas da mata escura’, nos dizem os poetas Sérgio Magrão e Luiz Carlos Sá em Caçador de Mim, versos eternizados na voz de Milton.
Agarro-me a eles porque ao fitar o buraco soturno onde vivem os facínoras fui invadida pela mata escura. E embora considere que as lutas futuras, com o objetivo de fechar os esgotos que foram abertos nas últimas eleições presidenciais e empestam o ar com sua catinga, exigirão doses venenosas, considero correto sufocar o mal que nos habita. Como Nietzsche, no livro Além do Bem e do Mal, texto com o qual estabeleci um diálogo nem sempre pacífico, entendo que “quem deve enfrentar monstros deve permanecer atento para não se tornar também um monstro”. Infelizmente não temos escolha, precisamos correr esse risco. Não podemos adiar mais essa tarefa porque não fazê-la também nos transforma neles.