Gostaria de no primeiro texto deste ano dizer como Mário Quintana – “já repararam como é bom dizer ‘o ano passado’? É como quem já tivesse atravessado um rio, deixando tudo na outra margem…tudo sim, tudo mesmo! Porque, embora nesse ‘tudo’ se incluam algumas ilusões, a alma está leve, livre, numa extraordinária sensação de alívio, como só se poderiam sentir as almas desencarnadas”, mas a sensação particular de desamparo me manteve paralisada.
Se eu tivesse realizado essa travessia, alcançado a outra margem e minh’alma estivesse desencarnada; houvesse eu desfrutado dessa extraordinária sensação de alívio sentida por Quintana, dedicaria aqui espaço considerável para o discurso histórico do Professor Silvio Almeida ao assumir o Ministério dos Direitos Humanos: uma peça irretocável que deverá ser guardada não apenas pela beleza mas também pela carga de sentidos na qual foi esculpida e que me mantém, depois de todos estes dias, presa a ela. “vocês existem e são valiosos para nós… quero ser Ministro de um país que ponha a vida e a dignidade humana em primeiro lugar”.
Infelizmente estou também presa a um dos últimos textos que li, no ano passado, de autoria de Priscila Gontijo, ‘Atravessar o inferno: os últimos dias do meu pai’. O texto discorre sobre o sofrimento do escritor e jornalista Ricardo Gontijo no fim da vida, em um hospital privado, no Rio de Janeiro. Diz a autora: “ninguém sai ileso dessa experiência. E nem deveria. O final da vida é a maior experiência humana em intensidade e afeto. Mas insuportável mesmo é a impotência. Eu só queria que alguém diminuísse o seu sofrimento. Não pedia por um milagre ou grandes proezas científicas, desejava apenas que ele tivesse um pouco de conforto”.
Desejar um pouco de conforto para uma pessoa que está à beira da morte parece ser uma exigência inaceitável para o sistema de saúde do Brasil. Há uma naturalização da agonia dos pacientes e os cuidados ou deixam de existir ou são transferidos para os familiares na imposição de aderirem ao atendimento domiciliar. E foi sob esse imperativo que findei o Ano Velho e iniciei o Novo Ano. Foi na obrigação de levar uma mãe de 91 anos de idade, com o coração gravemente comprometido e vítima de um AVC que afetou o lado direito do cérebro para a atenção domiciliar, que me impediu de sentir leveza na alma com a chegada do ano novo, como escreveu Quintana. Assim, no lugar de atravessar o rio deixando nas margens a pesada bagagem do ano anterior, trouxe-a presa ao meu corpo e experimentei dores infernais, semelhantes àquelas que sentiu Gontijo. Nestes dias, estive atravessando o meu inferno.
Como gestora com experiência na administração de plano de saúde, sei que a diminuição dos lucros leva operadoras e hospitais a induzirem famílias a levarem seus doentes para os tratarem em casa. Como pessoa, mais do que a proximidade da morte física da minha mãe, senti o assédio diário minando nossa dignidade e isso influenciou, negativamente, no meu comportamento como cuidadora, já que as insistentes importunações sugavam as minhas forças. No período de dois meses recebemos dois documentos de solicitação de home care, um relatório de transferência e um receituário – muito diferente daqueles que recebemos nas visitas a consultórios (é um relatório de transferência batizado de receituário) – somados aos discursos diários da necessidade de desocupação do leito. É claro que os discursos eram ricos em argumentos clínicos, que se desmascararam quando seus oradores aceitaram sem questionamentos a transferência para outra unidade hospitalar, de menor porte.
Em relação ao atendimento domiciliar, não há aqui julgamentos. Mas quem tem condições de avaliar e decidir se pode ou não aderir aos serviços é a família e essa é uma das razões que levou o Superior Tribunal de Justiça fixar alguns requisitos para a sua concessão, entre eles a concordância do paciente e a solicitação da família. Planos de saúde e hospitais não levam em conta estes critérios, constrangem os familiares diariamente com convites sutis para desocuparem o leito e, contando com a fragilidade a que estes estão expostos, tentam tutelar suas decisões.
Esse comportamento desrespeita também regras comerciais. Se o leito ocupado pelo paciente é público, como ao Estado não é dado o direito de negar atendimento – há para os governos a obrigação de encontrarem vagas na rede estatal ou na rede conveniada – entende-se, observado os parâmetros definidos pela justiça, a insistência de servidores públicos pela adesão dos familiares a atenção domiciliar. Não é o caso! Estamos falando de uma paciente que comprou o direito de usar um serviço privado e isso impede que outros usem o mesmo espaço.
Assim, quando a demanda é maior do que a capacidade de atendimento, o hospital privado pode dizer ‘não tenho leitos livres’. Exatamente porque o comprador que está usando os serviços não tem seus direitos de consumidor diminuídos, mesmo em situação de alta procura pelo mesmo atendimento. É cruel, mas é a lógica que alimenta o comércio. É a tal segurança do contrato, do respeito ao que foi anteriormente pactuado tão exigidos pelas empresas privadas, quando a situação é desfavorável a elas.
Pois bem, estamos falando de um plano de saúde contratado 30 anos atrás, onde o atendimento pactuado é em hospitais. Poderia se pensar em desequilíbrio econômico contratual que justificasse essa vil atitude. Não há. Mesmo durante a pandemia, a paciente cumpriu suas obrigações com o plano, suportando o aumento definido, sem usar da prerrogativa de adiá-lo para o ano seguinte, como foi estabelecido pela Agência Nacional da Saúde Suplementar – ANS. Foram três décadas ilusoriamente comprando conforto quando lhe faltasse saúde.
Ouvi da operadora que o hospital estava exagerando em exames e medicações na paciente. Ouvi do hospital que o plano estava invalidando despesas e inviabilizando o tratamento. Vejam vocês como é confortável o lugar em que eles se acolhem e se reconhecem como aqueles que justificadamente precisam desovar a moribunda. É desumano, demasiadamente desumano. Quanto trabalho terá o Ministro Silvio Almeida para construir o país que ele sonha!
A transferência para outro leito não ocorreu. A morte física veio antes e trouxe com ela uma dor profunda, mas também o alívio de poder sair daquele lugar. Às 10:20h o médico saiu do quarto anunciando que faria a documentação para a liberação do corpo. O documento chegou nas minhas mãos às 16h. Foram quase seis horas de espera por um formulário que tem o nome da paciente, CPF, identidade, endereço e causa da morte. Seis horas … seis horas… seis horas… para aprimorarem o assassinato da nossa dignidade.