A sala está pronta. Sobre a mesa um vaso com flores vermelhas. Sete cadeiras estão arrumadas em torno dela. Algumas convidadas já tomaram seus assentos. Logo atrás, na parede branca, uma tela – Santa Ceia das Mulheres do Coração Escarlate – da artista mineira Ternas (Terezinha Nascimento), que também dá cor e conteúdo a esse texto. À frente, as cadeiras da plateia já estão ocupadas.
Maya Angelou, ou Dra Angelou chegou ao encontro animada. Usa um turbante combinando com a saia e enormes brincos. Sorriso largo e uma mensagem na ponta da língua: “rio como quem possui ouros escondidos em mim, pode me atirar pedras afiadas, dilacerar-me com seu olhar, você pode me matar em nome do ódio, mas ainda assim, como o ar, eu vou me levantar”.
Oh minha senhora! Que imenso prazer conhece-la! Soube dos seus anos de silêncio após o estupro, mas depois quanta coragem! Quanta força para sempre de pé se postar! Fique à vontade, nossa reunião já vai começar. Infelizmente controlaremos os tempos de fala, embora todas tenham muito para contar.
Venha, veja quem chegou de Paris. Olympe Gouges! Pioneira nas lutas pela emancipação das mulheres. Ela está a detalhar como se opôs ao documento símbolo da Revolução Francesa, 1789, que marginalizou os direitos femininos. Fala-nos de seus romances, suas peças teatrais, entre elas ‘A França salva por uma mulher” e da Declaração de Direitos da Mulher e da Cidadã, 1791, proposta por ela à Assembleia Nacional francesa: “A mulher nasce livre e tem os mesmos direitos do homem. As distinções sociais só podem ser baseadas no interesse comum”.
Lamentavelmente sua atividade política levou-a à prisão. Julgada, foi condenada à guilhotina. Morri?! Pergunta ela. A poetisa Cora Coralina, que está a nos servir seus deliciosos doces, apressa-se em responder: “viverás no coração das jovens e na memória das gerações que hão de vir”.
Meu coração dispara ao ouvir Cora, mulher que o tempo ensinou a amar a vida, não desistir da luta e recomeçar na derrota. Que pena ter sido impedida de participar da Semana da Arte Moderna de 1922, pelo marido. Isso foi a cem anos atrás, lembram? Ainda hoje acontece!
Antes que pudéssemos refletir sobre isso, Nísia Floresta, do Rio Grande do Norte, irrompe na sala com seu livro ‘Direitos das mulheres e injustiça dos homens’, publicado em 1832, uma tradução do livro Vindication of the Rights of Woman, da escritora inglesa Mary Wollstonecraft.
Entusiasmada pelo debate ter rompido as barreiras europeias e cruzado o oceano, fico ao seu lado para ouvi-la falar: “Por que [os homens] se interessam em nos separar das ciências a que temos tanto direito como eles, senão pelo temor de que partilhemos com eles, ou mesmo os excedamos na administração dos cargos públicos, que quase sempre tão vergonhosamente desempenham”?
A fala nos lembra o impeachment em 2016, no Brasil, e suas inúmeras faces misóginas!! Diante delas Dilma Rousseff jamais se curvou: “abrimos um caminho de mão única em direção a igualdade de gênero. Nada nos fará recuar”, disse em seu último discurso. Mas o momento é de Nísia. Ela nos conta de sua insistência em ensinar latim para as meninas, matéria considerada inadequada para elas. Acreditam nisso?! Pois bem, sua proposta curricular recebia muitas críticas, inclusive na imprensa. A respeito dela escreveu o jornal mercantil –“ trabalhos de língua não faltaram; os de agulha ficaram no escuro. Os maridos precisam de mulher que trabalhe mais e fale menos”.
Pagu, escritora, diretora de teatro e jornalista ao ouvir tal heresia não contém a gargalhada. Dá um trago no cigarro, joga a fumaça em meu rosto e rodopiando feito pião diz “esse crime, o crime sagrado de ser divergente, nós o cometeremos sempre”.
Por isso você foi presa 23 vezes?! Sabe quem me falou de você Pagu? Rita Lee. Ela canta a plenos pulmões que você mexe e remexe na inquisição e como morreu na fogueira, sabe ser carvão. Morri?! Pergunta ela. Não! Ouve-se o grito vindo da plateia. Era Alice Ruiz, que completa: “tem os que passam e tudo se passa… e tem, ainda bem, os que deixam a vaga impressão de ter ficado”.
Assim também é a baiana Leolinda Daltro, fundadora do Partido Republicano Feminino, 1910, no Rio de Janeiro, embora não formalizado, porque nós mulheres, no Brasil, só alcançamos o direito ao voto na década de 30. A proposta dela era mobilizar as mulheres na luta por mais espaço na política porque “como mulher que sou, com um sentido superior de altruísmo, tenho me preocupado com a necessidade de minorar o sofrimento humano e de se atingir uma melhor distribuição da Justiça”. Não sei para vocês, mas isso me pareceu tão atual!
Fascinada pela ideia de um Partido comandado por mulheres Elza Soares levanta e entoa a canção – O que se cala – “Mil nações moldaram minha cara. Minha voz uso pra dizer o que se cala. O meu país é o meu lugar de fala”.
Todas levantam cantando. Na plateia, cartazes com fotos de outras mulheres são empunhados com orgulho. São fotos de Fridha Kalo, Simone de Beauvoir, Marielle Franco, Marie Curie, Virginia Woof, Bertha Lutz, Rose Marie Muraro…
Chegamos ao final. Agora juntas, de mãos dadas, palco e plateia, sentimos cair sobre nossas cabeças uma enorme bandeira. Nela a frase de Beauvoir, retirada do livro O segundo Sexo: “o opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”. Registre-se.