COMO SEREMOS LEMBRADOS?

Duas obras me levaram às reflexões que originaram esse texto: o filme A Ausência que Seremos, baseado no livro com o mesmo título do escritor colombiano Héctor Abad e; o livro O Mapeador de Ausências, do escritor moçambicano Mia Couto.

O primeiro é a história, contada pelo filho, da luta do médico sanitarista colombiano Héctor Abad Gómes executado pelos esquadrões da morte em razão das suas fortes convicções, que o levou a lutar incansavelmente pela saúde pública, pelos direitos humanos e contra a violência praticada pelos paramilitares com a conivência das autoridades daquele país.

O segundo, como o próprio autor disse, parte de uma sólida ideia de regresso. “Essa é a história de um jornalista e poeta português, um homem ingênuo a quem entregam provas de um massacre cometido pelas tropas portuguesas em Moçambique no ano de 1973. Esse homem bom e ingênuo era o meu pai”. Apesar de ser uma homenagem ao protagonista ausente, Mia Couto mapeia ausências sentidas pôr outros personagens e revela o circuito de afetos que se origina das suas e das ausências alheias.

Convido a refletirem sobre qual é a ausência mais presente em suas vidas. De quem sentem saudades?

Creio que quem melhor definiu o termo saudade foi Chico Buarque, na canção Pedaço de mim – “a saudade é o revés de um parto, a saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu”. É aquela partida que permanece, que não esvazia. É o espaço que não se ocupa, posto que permanece cheio. “Oh pedaço de mim. Oh, metade amputada de mim. Leva o que há de ti. Que a saudade dói latejada…”

Se o poeta está certo, como considero que esteja, o que os filhos Héctor Abad e Mia Couto desejaram foi homenagear homens maiores que suas ausências físicas. Partes exiladas dos escritores que não levaram seus sinais. Mia couto deixa isso claro quando diz “agora os gestos dele habitam-me as mãos que, ilusoriamente, penso serem minhas”.

E você? Já definiu qual a sua ausência mais presente? Se o fez por certo reconhece os sinais que a faz permanecer viva. Para você seria importante conhecer como estes sinais mexem com seus afetos no presente?

Considerei a importância de fazer esse exercício. Entretanto, levei em conta que Héctor Abad precisou de 20 anos para escrever sobre seu pai, dada a complexidade do personagem. Os dois escritores deram indicações das dificuldades para realizarem seus intentos e da necessidade de mergulharem na vida de seus pais para se autocompreenderem – “tenho saudades de meu pai apenas quando a mim mesmo me falto”, é um dos trechos do livro O Mapeador de Ausências que a mim parece revelar a caçada de si enfrentada por Mia Couto.

Devido à dificuldade da tarefa, defendo que qualquer descoberta a partir dessa reflexão, nesse momento, é preliminar, é introdutória. Ainda assim, confessar-lhe-eis meus achados iniciais.

Os traços que não foram amputados e que fazem a minha ausência se eternizar em mim são doses excessivas de responsabilidade e justiça e; ausências de afagos. A consequência direta disso se dá nas trocas do presente, que em sua maioria carece da beleza e da leveza das relações carinhosas, enquanto é rica de respeito, justiça e lealdade. Parafraseando Mia Couto, lhes digo: agora os sentimentos dele habitam-me e, ilusoriamente, penso serem meus.

Por fim, se chegamos aqui, ainda que de forma introdutória, talvez fosse importante, após o aprofundamento da prática de desvendar os sinais, num próximo exercício, saber se estamos repetindo o processo agora que somos os marcadores do tempo. Qual das nossas pegadas têm força para registrar a nossa presença quando não estivermos mais aqui? Quais dos nossos passos serão dados pelos outros como se fossem deles? Que ausência seremos?