EXTERNALIDADES DO MAL

“No início, discretamente aquele esgoto imenso a céu aberto se fez. Oriundo de um cano estourado, na esquina da rua da miséria com a avenida estupidez”. O trecho acima destacado inicia a canção ‘Tudo que não era esgoto’, de Jay Vaquer, que será a guia do texto que se inicia, porque a meu ver o compositor tratou dos efeitos do mal, na sociedade, com clareza invejável. Dessa forma, toda vez que encontrarem frases entre aspas serão partes desta canção.

Antes de me dedicar às consequências da abertura do esgoto, nas últimas eleições presidenciais, gostaria de esclarecer o que significa para nós administradores públicos o termo externalidade. 

Externalidade é o nome que damos aos impactos indiretos das políticas públicas. Por exemplo, quando uma política em defesa das mulheres é bem elaborada e com a sua execução ocorre a diminuição dos casos de violência de gênero, além dos benefícios diretos às mulheres e às suas famílias, os setores da saúde,  da assistência social,  da justiça e da segurança e até as finanças do Estado são positivamente impactados com a diminuição da demanda, e em consequência toda a sociedade acaba indiretamente sendo beneficiada. A isso chamamos de externalidades positivas.

As externalidades também podem ser negativas e a gestão desastrosa da pandemia da Covid 19, no Brasil, é um exemplo rico delas.  A condução da política da saúde para enfrentamento da pandemia não apenas matou no país uma proporção maior de pessoas que no resto do mundo como, indiretamente, também promoveu o aumento da evasão escolar e daquilo que a UNICEF chama de pobreza de aprendizagem, que gera deficiências futuras de produtividade; impôs perdas no nível de renda que somadas a alta da inflação resultou em insegurança alimentar para a maioria dos brasileiros e na volta do país ao mapa da fome; além do horror a que todos nós fomos submetidos com imagens de pessoas morrendo por falta de oxigênio e sendo enterradas em valas coletivas. Na verdade, aqui não estão presentes apenas externalidades negativas. A gestão da pandemia da Covid 19 é um dos exemplos mais cruéis de desrespeito à dignidade humana da nossa história, somente comparado aos rituais de tortura dos governos militares.

Esclarecido o termo, passo para a dolorosa tarefa de tentar entender no que o bolsonarismo está tentando nos transformar e considero o caso do ex-deputado Roberto Jefferson ideal para isso, porque nos mostra que depois de quase quatro anos de governo Bolsonaro “a vala foi ficando muito à vontade. Crescendo e aparecendo na comunidade”. 

Atingida pelas ofensas à Ministra Carmen Lúcia e pelas imagens das granadas e tiros de fuzil disparados pelo ex deputado contra os policiais, não pude deixar de lembrar que esse mesmo homem, anos atrás, no Governo Lula, ao perder o mandato e ser preso, administrou as adversidades do momento cantando ópera. O caminho da arte às armas mostra o grave estado de putrefação sob o qual se encontra o ex-deputado, que pode ser percebido como externalidade do modelo de gestão adotado pelo governo central, que legitima a submissão da vida pela morte.

Há uma gigantesca diferença no comportamento de Jefferson. No passado, na iminência de perder o mandato e ser preso, afirmou que se tudo perdesse viraria cantor. No presente, fortemente armado e visivelmente descontrolado, age como um cão raivoso.

 Anos atrás submeteu-se às decisões políticas e judiciais e lutou com os instrumentos legais, próprios da democracia, para tentar recuperar a sua liberdade e seus direitos políticos. Hoje, impõe aos brasileiros cenas grotescas de incivilidade e desrespeito às instituições, tornando-se um propagador das ideias de Bolsonaro que, conforme disse a jornalista Mônica Bergamo,  repercutindo falas de assessores da presidência, prefere morrer a ser preso e, em situação semelhante, também receberá os agentes do Estado embaixo de bala. 

O mal exemplo “se espalhou, dominou, tomou conta de todo o país. Na sarjeta imunda, orgulho entranhado até criando raiz. Podridão difundida, patrimônio cultural e quem não curtisse aquilo, era débil mental”. Não curtir a degeneração implantada conscientemente no país tem levado cristãos a serem perseguidos, dentro dos templos, em razão de não aceitarem suas igrejas pregarem um cristianismo sem Cristo. Não curtir a degeneração tem levado a multiplicação de assassinos e vítimas.  Não curtir a degeneração tem levado ao afastamento de familiares. Não curtir a degeneração tem impedido parcerias na produção de produtos e na oferta de serviços. Enfim, o bolsonarismo tem imposto um custo ao Brasil difícil de ser calculado, porque “tudo que não era esgoto, agora fede”.