A morte das sete virgens
Elas tinham um sonho: conhecer o mar. Em suas idades, de oito e 13 anos, nunca tinham visto a imensidão do oceano Atlântico, sua água salgada, que ia e vinha como marés. Só conheciam de ouvir dizer. Diana, Rosinete e Sineide, com oito anos: Margarete, com 12: Maria das Graças e Nilza, com 13 anos; e Iracy, na puberdade dos 16 anos. Foram sete meninas estudantes do Colégio São Francisco de Assis, do Instituto São Luís e do Ginásio Nossa Senhora do Bom Conselho, que faziam parte de uma excursão do CSF de Arapiraca à praia do Pontal de Coruripe, e que morreram afogadas, dia 8 de outubro de 1961.
Duas dessas meninas, Diana e Iracy Félix, não eram estudantes do Colégio São Francisco (a primeira era aluna do Instituto São Luís; a segunda, do Ginásio Nossa Senhora do Bom Conselho), mas se encontravam com os pais na praia do Pontal. Eram filhas de Sebastião Félix, paraibano proprietário de loja de tecido em Arapiraca. As outras cinco, todas pertenciam a “Cruzada” (movimento católico para meninas após a primeira comunhão): Margareth era filha de Florisval Barbosa; Rosinete Magalhães era filha de Alvacy Magalhães; Maria das Graças, filha de …; Sineide era filha do proprietário da Loja Sílvia, da rua do Comércio (praça Manoel André), cujo nome se perdeu no tempo; Nilza era filha do deputado Higino Vital.
A alegria dessas meninas (cinco delas), antes durante o trajeto encima de um caminhão (pau de arara) e nas areias finas e claras da praia do Pontal, era o coroamento que havia começado com a primeira comunhão. Haviam recebido o Pai criador, faziam parte da Cruzada, movimento estudantil e infantil que absorvia todas aquelas que, após o recebimento da óstia consagrada, iriam participar de uma vida em comum (mesmo ainda no início de suas existências).
Demorado trajeto
O transporte era um caminhão com tábuas de um lado a outro da carroceria, coberto com lona para o abrigo do sol (era conhecido como pau de arara), semelhante àqueles que ainda hoje fazem o trajeto para Juazeiro do norte (CE), onde prestam homenagem ao Padre Cícero Romão Batista. Saíram ao nascer do sol pelas ruas São Francisco, Dom Jonas Batinga, antiga Corrente, sítio Boa Vista, e foram em direção a São Sebastião (antigo Salomé). Atravessaram a incipiente BR 101 e,( no caminho para Penedo), saíram de uma estrada estadual (a AL110) e entraram numa estradinha na localidade Bolivar, entre canaviais.
Por três vezes, erraram o caminho. Mas, lá pelas nove horas, chegaram ao Pontal. Nivaldo Alves, o motorista, mesmo jovem e forte, estava cansado de dirigir pelos canaviais.
Em conversa com nativos pescadores, as irmãs do CSF escolheram uma praia afastada do farol, um pouco distante da movimentação dos frequentadores daquelas praias. Elas queriam sossego, privacidade e tranquilidade para as meninas.
Queriam paz.
O pedido
O tempo passava, tudo corria perfeito no alegre passeio das meninas do Colégio São Francisco de Assis. Com a chega do meio dia, uma por uma das meninas sentou-se na areia da praia, fazendo um grande círculo, e comia tranquilamente. As irmãs e as noviças também.
Uma hora depois do almoço, já descansadas, as meninas queriam voltar ao mar, fazer círculos na água, pular de mãos dadas, jogar água umas nas outras. Mas, havia uma determinação:
-Não, não, já está na hora, vamos todos nos preparar para a volta, que é muito longa! Disseram as irmãs.
Eram as irmãs que repetiam a frase.
-Oh, irmã, deixe um último banho. Por favor!
Repetiam as meninas.
As súplicas convenceram as irmãs, que as deixaram, por pouco tempo, mais um banho. Muitas entraram na água; poucas, por comodidade, ficaram na areia. De repente, gritos:
-Socorro, socorro!
Braços levantados, algumas das meninas tentavam sair da água. Nivaldo Alves, que estava na areia ao lado da noiva Rejane Pereira, foi o primeiro a ouvir os gritos e a entrar nas águas. Desesperadamente, puxava, uma a uma, para fora das águas. Exausto, quase desfaleceu.
Outras pessoas, que estavam por perto, também puxaram as meninas que se afogavam. Chorando, vomitando água ingerida, se abraçavam uma com as outras. As irmãs, também.
Menos sete delas.
Pai proíbe viagem e evita morte de 3 filhas
Três irmãs, Ana, Leta e Fátima, não foram ao pontal naquele dia fatídico. O pai, Haroldo Matos, um dia antes do oito de outubro, negou às irmãs do CSF a ida das filhas, mesmo com todas as despesas pagas. A rigidez paterna foi maior que todas as despesas já feitas (as primeiras roupas para banho no mar, o pagamento do transporte, a alimentação das filhas). Premonição?
Hoje, avós, as três ainda se lembram do não do pai, do pedido das irmãs do CSF, do olhar triste de sua mãe, Amparo, em ver negado o sonho infantil das filhas . E das amigas que não mais estão com elas.
Este poema foi lido no enterro das cinco primeiras meninas, no cemitério Pio XII. O nome do (a) autor (a) perdeu-se no tempo.
O céu colheu um bouquet
Autor (a) desconhecido
A primavera reinava lá no céu florida e verdejante como sempre, mas o
Menino Jesus estava triste.
Pois queria um bouquet bem diferente…
Andou pelos jardins do Paraíso, e perguntou a Mãezinha, o que fazer?
Ela respondeu: Olha lá prá terra!
Temos lindas florzinhas prá colher!
Eu as tenho guardado docemente, nas dobras mais fundas do meu véu mas
Temo que um dia, tristemente, elas saiam e esqueçam cá do céu.
E, antes que aconteça tal desgraça vamos trazer-lhe para o nosso jardim.
De cada boa mamãe eu quero uma florzinha para com elas fazer um bouquet
Assim:
Na flor dos anos, sentindo pela vida sede infinita de amor e luz,
Vou te colher IRACY querida, serás a rosa do teu Jesus.
MARGARETH será meu lírio branco
Símbolo de pureza e castidade
Ela repousará sobre o meu manto
Por todos os séculos da eternidade.
Quero também uma humilde violeta, igual a MARIA DAS GRAÇAS
Que tenha o selo da modéstia
Tão sutil e fugaz como a fumaça.
Meu bouquet há de ser bem perfumado
Vou colher para ele SINEIDE DALVA
Ela tem um perfume de jasmin.
Ela é tudo de bom que eu esperava.
Um cravo escarlate eu trarei
Para alegrar meu eterno bouquet
E entre todas que eu chamei
DIANA meu cravo será você.
O pequeno miosótis
Tão sereno e tão gentil
Será a doce NILZINHA
De alma primaveril.
A doçura de uma angélica
Em ROSINETE hei de ter!
É tal delicada e terna
Que não posso perder.
Foi assim que lá do céu
Houve uma grande alegria
E Jesus ofereceu
Um lindo bouquet a Maria
Diretora do Colégio São Francisco
Fundadora do Colégio São Francisco de Assis, Leonor nasceu em Delmiro Gouveia (AL), tendo estudado os primeiros anos na cidade de Propriá (SE). Com apenas 15 anos, entrou no Convento das Irmãs Franciscanas Hospitalares da Imaculada Conceição, quando passou a se chamar de Irmã Helena do Espírito Santo. Após os votos, passou a viver em Penedo (AL), no Colégio Imaculada Conceição. Viveu, também, em 1945 em Aracaju, no Colégio Patrocínio de São José. Ainda como educadora, foi para Mossoró (RN), de onde retornou a Penedo. Em 1954, por solicitação do padre Epitácio Rodrigues ao bispo diocesano Dom Felício, foi designada para iniciar a construção do Colégio São Francisco de Assis.
Irmã Maria Helena foi a incentivadora do passeio das alunas ao Pontal do Coruripe, como prêmio à primeira comunhão. Faleceu em Aracaju, porém, a pedido do povo arapiraquense, aqui está sepultada.
Uma lembrança do Colégio São Francisco
Irmãs Edith e Alzira juntas com alunas do Colégio São Francisco (Ana Freitas Matos Lira e Lúcia Rocha, sentadas; Iraildes Protásio e Maria do Carmo, em pé). Irmã Edith era noviça quando ocorreu a tragédia no Pontal do Coruripe.
A história contada por quem viveu a tragédia
Nadja Tavares Lima (filha de Isaías Lima e Maria Gildete Tavares Lira, neta de Agnelo Lira) é orientadora social no Centro de Referência Especializado de Assistência Social da Prefeitura de Arapiraca (Creas). Ela é uma das sobreviventes da tragédia do Pontal de Coruripe. À época, tinha somente dez anos e foi salva do redemoinho nas águas do mar por um pescador que acudiu os gritos das irmãs franciscanas. Mesmo após tantos anos a lembrança continua viva em sua memória.
-Eu era, como minhas amigas, da “Cruzada”, um movimento católico voltado para as meninas após a primeira comunhão. Todas estávamos radiantes por aquela oportunidade de conhecer o mar. Não sabia que tudo seria assustador.
Ora, o Colégio São Francisco de Assis era o melhor de Arapiraca para o ensino de jovens do sexo feminino. As irmãs detinham grande prestígio perante os pais de alunas e a comunidade. Diante disto, um passeio ao Pontal de Coruripe e o primeiro banho de mar era a coroação de um ano de vivências daquelas meninas, que haviam recebido Cristo, pela comunhão.
A alegria de todos era uma só.
Mas, relembra Nadja:
-Depois do almoço, alí mesmo na areia da praia, pedimos a madre Maria Helena para um último banho de mar. A contragosto, deixou-nos entrar na água. De repente, muito de repente, as águas ficaram revoltas. E eu afundava. Lutava para não me afogar, batendo ferozmente meus braço na água. Eu não sabia nadar. Era a primeira vez que via o mar, aquela imensidão.
– Não me lembro de mais nada. Somente que braços fortes me puxaram e me colocaram na areia. Passei a chorar copiosamente. Lembro-me que meu choro se confundia com outros choros. Eram as irmãs gritando e chorando.
Irmão de vítimas estava lá
-Eu também estava no Pontal do Coruripe naquele dia. Acompanhava meus pais, Sebastião Félix e Maria de Jesus Sousa, e minhas irmãs, Diana e Iracy. Tinha somente dez anos, mas me lembro muito bem daquele dia 8 de outubro.
A história é contada por José de Anchieta Sena, o Anchieta, ex-gerente do Bradesco, em seu comércio na rua Brasília. Apesar do tempo e da idade que tinha, lembra-se claramente daquele dia. E da alegria estampada nas faces de todas as meninas por tomar banho de mar pela primeira vez. Diana e Iracy eram de uma alegria só.
Anchieta conta que naquele passeio, seu pai Sebastião levou sua mãe, ele, Diana e Iracy para o banho no pontal em seu carro, uma Rural Willys. E se encontrou com a caravana das freiras lá em Coruripe, num local separado do farol, afastado da de outras pessoas. Elas, as freiras, queriam privacidade.
-Tomamos banho de mar até quase 12 horas. Lembro bem que muitas das meninas pulavam na água de mãos dadas, segurando-se. Umas jogavam água nas outras; outras, riam muito! Eu brincava naquela areia fina, ao lado de meus pais.
Depois das 12 horas, após todas comerem ali mesmo, embaixo dos coqueiros, Anchieta e seus pais se afastaram para o lado do farol. Ainda deu tempo de ouvir muito bem: : “deixa, deixa a gente tomar um último banho, irmã!”
A irmã Maria Helena consentiu. E muitas das meninas da “cruzada” entraram nas águas do Pontal, segurando umas as mãos das outras, pulando e rindo.
Foi a última vez que viu suas irmãs vivas.
Anchieta conta que estava brincando com areia em frente ao farol, seus pais deitados ao lado, quando ouviu gritos de meninas: “socorro, socorro, as meninas estão mortas!” Todos correram para o local. Lá, cinco meninas estavam deitadas na areia.
-Minhas irmãs estavam quietinhas. Papai pegou nelas, balançou-as, e nada. Ele notou logo que estavam mortas. Olhou ao lado e viu duas outras colegas ainda se mexendo. Pediu ajuda e colocou-as no carro. E saiu em direção a Coruripe, levando as duas ao hospital. Mas, foi tarde. Elas não resistiram. Meu pai, então, voltou à praia.
O filho de “seu” Sebastião ouviu, de alguém, que faltavam duas meninas. Ao todo, foram sete as afogadas. Essas só deram à praia dois dias depois.
Anchieta olhava tudo aquilo sem mensurar as consequências. Só ouvia choro das meninas e das freiras. Era uma dor só.
Durante o trajeto de volta para Arapiraca, lembra que seu pai permanecia sizudo, enquanto a mãe chorava copiosamente. Ele, sentado no pneu da rural (que ficava no porta-malas), com o corpo de Iracy no banco traseiro, e o de Diana atrás, não chorou.
Por que?
Até hoje, quase 60 anos, não sabe o motivo.
Tragédia foi destaque nos jornais de Alagoas