INSS: entidade investigada deu golpe até nos próprios funcionários

Denúncias exclusivas enviadas à coluna revelam novas facetas da teia de irregularidades envolvendo a Confederação Nacional dos Agricultores Familiares (Conafer), apontada como uma das principais entidades ligadas à farra do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) – escândalo revelado pelo Metrópoles em uma série de reportagens publicadas a partir de dezembro de 2023 (saiba mais abaixo). Funcionários da entidade, que protagoniza o início das fraudes, denunciam pressão psicológica, atraso nos salários e desvios de função.

O denunciante, que preferiu manter sua identidade em sigilo, contou, em entrevista, que as irregularidades relacionadas aos funcionários não começaram agora. O estopim, no entanto, teria ocorrido em 8 de janeiro deste ano, quando a associação emitiu um comunicado anunciando que, a partir daquela data, todos os colaboradores passariam a ser filiados à entidade, tendo acesso aos benefícios, projetos e ações disponibilizados.

Inicialmente, a notícia pareceu positiva aos olhos dos trabalhadores. Contudo, o mesmo documento informava que, para ter acesso às supostas regalias, os funcionários teriam de desembolsar, mensalmente, 2,8% do salário mínimo vigente – o que, naquele mês, equivalia a cerca de R$ 39,54.

Segundo a Conafer, a finalidade da contribuição seria “reforçar o financiamento de projetos, campanhas e doações que beneficiam diretamente agricultores familiares e empreendedores rurais em todo o país”.

Revoltado, o denunciante relatou que mesmo aqueles que se posicionaram contra a inscrição no cadastro de associados tiveram os valores descontados nos contracheques de seus salários.

No documento que anunciou a filiação coletiva, consta a assinatura do presidente da entidade, Carlos Roberto Ferreira Lopes. Inconformados com a impossibilidade de impedir os descontos, alguns trabalhadores se uniram para denunciar o caso, anonimamente, ao Ministério Público do Trabalho (MPT).

Após isso, os abatimentos teriam sido suspensos. “Houve a denúncia e, logo após, eles disseram que fariam de outra forma. Porém, o que foi descontado [referente ao mês de janeiro] nunca foi ressarcido. Eles também não deram comprovante de que houve desconto – apenas depositaram o salário com o valor da mensalidade já abatido.”

Meta de filiação

Conforme o depoimento, quem trabalha para a associação vive à sombra do medo da demissão. Uma meta de filiação é estabelecida mensalmente e, de acordo com o relato, gestores que não a alcançam são suspensos e têm valores descontados da folha de pagamento.

Documentos enviados à coluna, também assinados pelo presidente da Conafer, corroboram a denúncia. Em um dos “alertas” encaminhados aos colaboradores, o emissor afirma, após um episódio de demissões, que, caso o “corte” não surta efeito nas filiações daquele mês, mais 10% dos funcionários seriam desligados.

“Os cortes irão acontecer até a direção entender que nós, colaboradores, compreendemos o que é a Conafer e que os filiados são a prova de que estamos, de fato, cumprindo com nosso estatuto. Não faz sentido funcionários não serem associados. No início era tudo tranquilo, mas depois começou o ‘surto’ por ficha de filiação. Desde a visita da Polícia Federal, o clima mudou. Ninguém fala sobre o assunto e tratam como se as notícias na mídia fossem falsas”, confidenciou o denunciante.

Pagamentos em banco de alvo

Ainda segundo o funcionário, todos os colaboradores são obrigados a receber os salários por meio do banco Terra Bank.

Conforme divulgado no início deste mês pelo colunista Fábio Serapião, do Metrópoles, um dos sócios da instituição foi apontado pela Polícia Federal (PF) como operador da Conafer no esquema de fraudes contra o INSS.

Cícero Marcelino, sócio-administrador do banco digital Terra Bank, que se apresenta como voltado a produtores e empreendedores rurais, foi citado pela PF durante as investigações. De acordo com as informações divulgadas pelo colunista, a instituição financeira iniciou suas atividades em maio de 2022.

Desrespeito às normas

Uma segunda queixa apresentada pelos funcionários refere-se aos atrasos nos pagamentos. Em uma mensagem apontada como sendo deste mês, um aviso enviado por WhatsApp, assinado pelo setor financeiro da Conafer, informa que, devido a “questões relacionadas à logística interna”, a programação de pagamentos referente ao mês de maio seria iniciada apenas no dia 15.

Em outros prints, de meses distintos, avisos encaminhados pelo setor de Recursos Humanos da entidade comunicam que o prédio enfrentava problemas com a bomba d’água e, por isso, os trabalhos deveriam ser realizados em regime de home office.

No entanto, o funcionário que procurou a coluna relatou que, em diversas ocasiões, o expediente ocorreu normalmente, de forma presencial, mesmo sem água no prédio. Segundo ele, os banheiros estavam trancados, e os colaboradores precisavam se deslocar até estabelecimentos comerciais da região para utilizar os sanitários.

“Vejo que vocês falam sobre a entidade e o INSS, porém, além disso, tem o descaso com os funcionários, como a obrigatoriedade de bater meta de ficha de filiação, desvio de funções, funcionários que trabalharam dois dias sem água no prédio, com banheiros trancados”, disse, indignado.

Um funcionário procurou a coluna para denunciar pressão psicológica
Segundo a denúncia, o pagamento dos salários vive atrasando
Há meta de filiações que custam o emprego dos gestores

O núcleo da farra

Conforme a coluna revelou, em 2021, um Procedimento Investigatório Criminal do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios já alertava para um desvio sistemático de recursos públicos.

Naquele ano, a Conafer saltou de 42 mil para mais de 279 mil filiados. O crescimento coincidiu com o auge da pandemia e com a redução no atendimento presencial do INSS, cenário que favoreceu a aplicação do golpe.

Milhares de aposentados e pensionistas descobriram os descontos apenas meses depois. Alguns, com benefícios próximos ao salário mínimo, tiveram até R$ 77 abatidos por mês.

O esquema

O escândalo do INSS foi revelado pelo Metrópoles em uma série de reportagens publicadas a partir de dezembro de 2023. Três meses depois, o portal mostrou que a arrecadação das entidades com descontos de mensalidade de aposentados havia disparado, chegando a R$ 2 bilhões em um ano, enquanto as associações respondiam a milhares de processos por fraude na filiação de segurados.

As reportagens do Metrópoles levaram à abertura de inquérito pela PF e abasteceram as apurações da Controladoria-Geral da União (CGU). Ao todo, 38 matérias do portal foram listadas pela PF na representação que deu origem à Operação Sem Desconto, deflagrada em 23 de abril e que culminou nas demissões do presidente do INSS, Alessandro Stefanutto, e do ministro da Previdência, Carlos Lupi.

A coluna procurou a Conafer e o Ministério Público do Trabalho (MPT), mas, até o momento, não houve retorno.

Por Metrópoles