JORNADA ARRISCADA

O ano passado, como parte da terapia, me foi indicado a leitura do livro de Brené Brown ‘A coragem de ser imperfeito’. Não consegui chegar ao final. Alguns questionamentos ali presentes me impediram de continuar. Estou disposta a correr riscos emocionais? Esta questão caiu como uma enorme pedra sobre mim. Ainda que o livro tentasse me incentivar dizendo “somente quando temos coragem suficiente para explorar a escuridão, descobrimos o poder infinito de nossa própria luz”, permaneci paralisada em relação a ele.

Apesar de não ter lido, considerei o conceito de vulnerabilidade proposto por Brown interessante. Até então trabalhava a vulnerabilidade como fragilidade, fraqueza, desproteção. Para a autora nós a rejeitamos exatamente porque a associamos a sentimentos sombrios como medo, no entanto, ela seria o centro de todas as emoções e sensações. Brown apresenta-a como sendo incerteza, risco e exposição emocional.

E você? Tem disposição para correr riscos emocionais? O que faz quando se sente emocionalmente exposta? Explorar a sua escuridão é um exercício que valeria a pena? Faria isso agora? Como disse Mário Quintana “a vida é uns deveres para fazer em casa. Quando se vê, já são seis horas: há tempo…Quando se vê, já é sexta feira…Quando se vê, passaram 60 anos! ” Sentencio que a minha hora é agora, sem a certeza de que a minha exposição contará com a sua empatia, o que significa que os riscos não foram calculados.

Começo radiografando o presente. Passo a observar a casa em que vivemos e vejo que ela envelheceu conosco. Em todos os cômodos há sinais da nossa idade e há também o desleixo característico da ausência de disposição para pôr as coisas em ordem.

O acúmulo do desnecessário já não se pode esconder. São tecnologias obsoletas, documentos antigos, roupas e sapatos que não se usa. Somados a isso, vê-se pequenos riscos nas pedras que cobrem as paredes dos banheiros e da cozinha, o piso perdeu seu brilho e apresenta marcas de objetos que ao caírem, deixou-lhes cicatrizes.

Detenho o meu olhar nas paredes da sala. Meu Deus! As telas desbotaram?! O tecido do sofá também. Os móveis precisam de uma camada de verniz. As cortinas devem ser trocadas. Quando paramos de nos importar com ela?! Lembrei da conversa com um psiquiatra na qual ele disse que a organização da casa reflete a forma como está sua cabeça. Torço para que ele esteja errado.

Insegura, acolho-me em Clarice Lispector e ela me diz “só o que está morto não muda! Repito por pura alegria de viver: a salvação é pelo risco, sem o qual a vida não vale a pena! ” Lispector também aconselha a correr riscos?!

Continuo sem calculá-los e, portanto, sem a certeza de que a minha exposição tocará você. Mergulho no passado. Resolvo começar pelos papéis guardados em gavetas, estantes, armários. Formou-se, no meio da sala, uma enorme pilha de folhas, escritos e impressos.

Os papéis que foram e ainda serão rasgados lembram quanto tempo estamos aqui. Há cartões feitos pelos filhos, na educação infantil, com declarações de amor. Cartões e certificados de alunos destaque do ensino fundamental. Um texto do filho mais velho reclamando da proteção exagerada sobre ele e o irmão “é fruto do grande amor que sentem, mas nos sufoca”. Ouso dizer, embora não seja datado, que ele devia estar no ensino médio. Dos tempos da Universidade, muitos panfletos da sua ativa militância e, até eles, já têm mais de uma década.

Creio que não haja razões para pedir perdão quando a própria vítima entendeu que aquele era o nosso jeito de amar. E como o amor aos filhos se impôs nas nossas vidas, recorro a Vinicius de Moraes para dar testemunho dele. “Amo-te afim, de um calmo amor prestante. E te amo além, presente na saudade. Amo-te, enfim, com grande liberdade. Dentro da eternidade e a cada instante”.

Continuo a jornada pelo passado e agora estou cuidando apenas do meu. Vem a mim as palavras do poeta Thiago Mello, que a pouco nos deixou, “sem conhecer-me, padeço o mistério de existir em amargo desencontro comigo mesmo”. Sussurro: coragem! E sigo.

Entre os documentos encontro o desenho de ex-colegas de trabalho se referindo a mim como ‘a super chefe’. Será que também os sufoquei? O meu amor sufoca e o meu comando também?!

Recordo que um deles costumava dizer que o desagradava me ver com determinado colar – nesses dias o tempo fechava. Não sei com qual frequência usei esse acessório, mas como Carlos Drummond “nunca me esquecerei desse acontecimento na vida das minhas retinas tão fatigadas”. No caminho de Drummond havia uma pedra e no dos meus ex-colegas a pedra seria eu? 

Por certo Thiago Mello me diria – já fostes dona de um chão todo feito de certezas tão duras como lajedos. Agora tens um caminho de barro umedecido de dúvidas. Cheia de gratidão lhe responderia: caro poeta, a poesia, mais do que a ciência, me ensina a encarar as minhas vulnerabilidades e me torna humana,  demasiadamente humana.