O primeiro texto que li nas primeiras horas do ano de 2022 foi a crônica de Rubem Braga – ‘Meu ideal seria escrever’. Nela o autor relata o desejo de escrever uma história tão engraçada que a moça doente e triste risse tanto a ponto de se admirar do seu próprio riso. E o marido e a esposa, que estavam aborrecidos, também rissem muito depois de lê-la “e reencontrassem a alegria perdida de estarem juntos”. Tal história alcançaria o mundo, seria contada em várias línguas e tocaria tão profundamente seus leitores que um chinês muito sábio suporia ser de autoria de um santo, que a teria ouvido de um anjo tagarela. Não podia ser humana, era divina.
E eu? O que gostaria de escrever na primeira edição deste ano?
Ah, se talento tivesse, amaria dizer algo significativo para você, como Jorge Amado fez comigo ao escrever Capitães de Areia. Embora sendo de uma cidade bastante pobre e pequena, encrustada no Agreste de Alagoas, não conheci na minha infância e adolescência os meninos de rua. Conheci-os nesta obra e ela formou a minha percepção sobre eles.
Veja, se a mim fosse dado, por alguns minutos apenas, uma fagulha de genialidade, faria um texto extraordinário sobre pessoas que encontraram no seu ofício o modo de transformar a realidade de outras. Creio que escolheria começar falando do Padre Júlio Lancellotti e sua luta contra a aporofobia, vocabulário que aprendi com ele. A imagem desse homem frágil tentando arrancar blocos de cimento colocados pela prefeitura para evitar que moradores de rua se estabelecessem embaixo dos viadutos, em São Paulo, fortaleceu os sentimentos já despertados por Jorge Amado. Não é humano, é divino!
Ora… ora, se a mim fosse concedido milésimos de segundos de uma luminosidade criativa, poderia desenvolver um método que possibilitasse o crescimento do indivíduo e apropriação por ele dos espaços que são seus por direito, como fez Paulo Freire. Ou ainda, quem sabe, um método que estimulasse a expressão dos sentimentos internos através da arte como fez Nise da Silveira, mudando para sempre o olhar da psiquiatria. Pensando bem não precisaria ser a autora do método, ficaria satisfeita se ao comunica-lo inspirasse um leitor, uma leitora na arte de fazer o mundo melhor.
Ah! Quem dera pudesse eu escrever algo como ‘Ensaio sobre a cegueira’ de José Saramago. Por certo despertaria alguém do sono profundo da ignorância. Libertaria para sempre essa pessoa de alguns dos sentimentos que a diminuem e a afastam do humano e, de qualquer semelhança com o divino. E se fosse de fato talentosa poderia igualmente ter sido autora do roteiro do filme “Não olhe para cima” que estreou a pouco na Netflix. Politicamente correto, o filme mostra como os interesses econômicos e políticos de pouquíssimas pessoas induzem à cegueira coletiva e a destruição do planeta.
Mas, aqui pra nós, escrever isso tudo em versos como fazem os poetas seria glorioso! Olho pra eles como seres que apenas habitam a terra para, com leveza e rigor estético, nos apontar caminhos. Quem sabe pudesse eu acompanhar Lêdo Ivo no Soneto das Alturas “meu corpo nada quer, mas a minh’alma em fogos de amplidão deseja tudo o que ultrapassa o humano entendimento. E embora nada atinja, não se acalma e, sendo alma, transpõe meu corpo mudo, e aos céus pede o inefável e não o vento”. Elevada pela poesia, estando lá no alto, ouviria Gonzaguinha dizer “é o sopro do Criador numa atitude repleta de amor” e, concluiria, sem a sapiência do chinês de Rubem Braga, que a arte nos aproxima de Deus, mas são as ações que nos assemelha, ou não, a Ele.