O LUGAR DOS AMANTES

Hoje, reli a crônica ‘As três experiências’ de Clarice Lispector. Nela a autora diz que nasceu para amar, escrever e criar os filhos. Tinha outras vocações, mas decidiu escrever porque isso não exigia dela um grande aprendizado. “Para escrever o aprendizado é a própria vida se vivendo em nós e ao redor de nós”. Sentia a cada texto as mesmas emoções do primeiro, o que a fazia renovada à medida que o tempo passava. A isso chamava de viver e escrever.

Embora diga que cada livro era uma estreia penosa e feliz, para mim ficou a impressão de que não se demorava muito na elaboração de seus textos. Seu talento lhe permitia amar e escrever. Criar os filhos e escrever. Viver e escrever. Escrever, viver, amar e criar os filhos como se fossem partes de um único ato, protagonizado por ela.

Essa facilidade para escrever que possuem as grandes escritoras não é comum. Mesmo para as pessoas que têm como ofício escrever, o processo de elaboração de um texto apresenta níveis de dificuldade, algumas vezes intransponíveis, que levam ao abandono de alguns temas. Por isso uma das experiências mais extraordinárias é acompanhar o nascimento de uma obra literária.

Não é algo que ocorre de uma hora para outra. Na verdade quando a ideia do texto é apresentada já passou várias vezes pelo crivo do seu criador. Esse julgamento possibilita-o traçar o caminho para o seu desenvolvimento. Vários rumos são desenhados até que um seja escolhido. A partir daí se inicia um exaustivo trabalho de pesquisa e já não é possível cronometrar as horas dedicadas a ele. Somente depois disso, arrisca-se o idealizador a fazer suas primeiras anotações, organiza-las, definir o roteiro e escrever. Enfim nasce a obra e, especificamente nesse caso, também um escritor.  

Testemunhar esse processo é um privilégio raro. Receber parte da obra ainda em concepção é algo magistral. Tenho agora em mãos capítulos de um romance ambientado em lugares que conheço, com forte influência de autores que admiro. Passo a devorá-lo. Como leitora acompanho com atenção a trajetória de cada personagem. Envolvo-me com elas. Passo a torcer por algumas e a julgar com rigor outras, chegando a condena-las numa trama que ainda está em construção e na qual uma identificação maior com as personagens hoje condenáveis pode surgir.

A condição de estar diante de uma obra inédita e inacabada, com um enredo apaixonante me transporta para o lugar onde somente os amantes da leitura conseguem chegar. E quem já experimentou essa sensação, que se assemelha a uma paixão, sabe que nesse estado a razão é sequestrada pela libido e são os sentimentos que assumem o controle. Confesso-lhes, se escritora fosse, gostaria de leva-los para esse cantinho. Conduziria todos para a morada dos sentimentos, porque é nela onde o melhor do texto e o melhor do leitor se conectam. E é precisamente nesse espaço que as obras literárias realizam suas conquistas.

Estou sentada confortavelmente nesse lugar, o lugar dos amantes da literatura. Tenho um texto inédito nas mãos, de um novo escritor. O texto ativou minhas amígdalas corticais para além dos sentimentos relacionados ao medo e o sistema límbico isolou o córtex. Nesse momento os erros gramaticais ou ortográficos não me preocupam, estou apegada a natureza das personagens e a rede que se formou entre elas.

Não sei o que ocorrerá no romance. Também não sei o que será dele depois de escrito. Como todo romance se caracteriza por textos longos, fico torcendo que o autor não o abandone antes de conclui-lo. Entretanto, sei que não há incentivos para que se leve tal empreitada até o fim. Num país como nosso, escrever é quase um ato de desobediência, posto que a ordem vigente trabalha para o fim das artes e estimula a barbárie.  

Essa política de dificultar a produção e distribuição das artes, incluída a literatura, não é aleatória. O que buscam é dificultar o acesso a elas, porque é nelas que nos vemos como seres civilizados. É através delas que estabelecemos debates onde as opiniões possuindo o mesmo peso se completam, independentemente da formação dos participantes, da região onde moram e das suas origens. Todos somos capazes de dizer, justificando, gostamos disso, mas não daquilo. As artes não exigem de seus críticos conhecimentos especiais, porque avalia-las pelos métodos usados na sua composição, não alcança o que há de melhor nela.

As artes desejam identificação. Trabalham para ser reflexo da natureza, da sua natureza. Quantas vezes nos encontramos em uma música, num texto de um poema, ou em uma personagem de romance? Elas também nos põem em contato com realidades desconhecidas, ativam as nossas capacidades reflexivas e nossos desejos de mudanças. Essa deliciosa invasão no nosso interior mais profundo as diferenciam de todas as outras atividades humanas e, acreditem, são as artes que, concretamente, nos transformam em amantes da vida.