OS BEIJOS AMARGOS DA VERDADE

Uma brecha diante da soberana crueldade são as formas de enfrentá-la.  Com essa frase o psicanalista Abrao Slavutzky introduz no texto ‘Um sábio em Auschwitz’ uma lição de resistência de prisioneiros de um dos campos de concentração instalado na Polônia para não serem transformados em animais, como queriam seus algozes. “Devemos nos lavar sim, ainda que sem sabão, com essa água suja e usando o casaco como toalha. Devemos engraxar os sapatos, não porque assim reza o regulamento, e sim por dignidade e alinho. Devemos marchar eretos, sem arrastar os pés, não em homenagem à disciplina prussiana, e sim para continuarmos vivos, para não começarmos a morrer”.

            Esta inspiradora história nos ensina pelo que entrega – é preciso resistir. Mas também pelo que não nos dá – ela não nos presenteia com a vitória sobre o nazismo. Porque resistir é necessário, mas não é suficiente para derrotar a crueldade. Para vencer é preciso conhece-la, entender suas transformações históricas e as novas modulações com as quais se apresenta e, agir coletivamente.

            No Brasil, a crueldade soberana perdeu o pudor, despreza a lógica e aposta na infinitude da estupidez humana. A face mais despudorada dela se deu na negação da Covid 19 – é uma gripezinha – e na defesa da imunização de rebanho como método para combate-la. Antes já havia se apresentado pelo desmonte dos órgãos de defesa do meio ambiente e pela atuação em prol de armar a sociedade. Agora ataca a democracia.

            Em relação a má gestão do combate a pandemia a consequência mais danosa foi, segundo investigação do grupo Alerta, 120 mil mortes a mais de brasileiros por Covid 19 que poderiam ter sido evitadas até 25 de março de 2021, caso medidas não-farmacológicas tivessem sido adotadas de maneira ampla, duradoura e suportada por medidas de apoio social no Brasil.

As agressões ao meio ambiente com autorização do governo federal, tem como resultado a devastação de 8.712 km² apenas no período de agosto 2020 a julho de 2021, conforme dados do INPE. Permanecendo a política atual teremos como mostra o relatório elaborado pelo painel intergovernamental sobre o clima da ONU, divulgado no último dia 09, um volume maior de chuvas para as regiões sul e sudeste, seca mais rigorosa para o nordeste do Brasil, e aumento da temperatura em taxas maiores que a global para a América do Sul.

Já o crescimento expressivo do número de armas em circulação, são 1.840.822 armas nas mãos de cidadãos comuns, é considerado pelo Fórum de Segurança Pública como um dos motivos para o aumento em 4% do número de mortes violentas intencionais em 2020.

            Entretanto todo esse rastro de destruição, que deixará como legado um país doente sócio e economicamente, não se equiparará com a demolição da democracia. Aliás, nunca é demais lembrar que os governos militares nos presentearam com duas décadas de estagnação econômica, somada a hiperinflação e que os brasileiros foram capazes de reconstruir o país a partir da instalação do regime democrático. Portanto, a aposta do presidente da República na radicalização ideológica das forças policiais para servir ao seu projeto de poder; os ataques às cortes e aos membros do judiciário; as agressões às autoridades dos entes subnacionais e mais recentemente ao sistema eleitoral brasileiro não interessa à Nação. Essa sanha criminosa contra a democracia ameaça inclusive a realização das próximas eleições.

            As eleições se constituem na forma primeira de fazer política no regime democrático e devem ser circundadas pelas liberdades civis. Além disso, devem ocorrer sob regras que estabelecem quem pode e como jogar. A legitimidade do sistema está vinculada ao respeito a estas normas devido a uma estreita relação entre jogadores, movimentos autorizados e regulamento. O que faz o atual presidente brasileiro? Dissemina informações falsas para tornar desacreditado o sistema eleitoral do país. Há uma clara escolha pelo enfraquecimento das instituições que são pilares da democracia, enquanto simula estar em sua defesa.

O Congresso Nacional não parece disposto a embarcar nessa aventura. Para a Deputada Federal Tereza Nelma – PSDB/AL, o Sistema Eleitoral se mostra seguro porque não existe, até então, nenhuma prova de que houve fraude. Além disso, entende que a obrigatoriedade da expedição de cédulas físicas conferíveis não trará segurança ao eleitor, especialmente para os que vivem nas periferias, nos pequenos municípios, onde o risco de coação do eleitorado é muito maior. Tereza Nelma considera importante pensar no Brasil como um todo, pensar não só nas grandes cidades, mas sim como esse sistema proposto irá funcionar nas pequenas cidades, nas comunidades onde há tráfico e milícias. Conhecendo a importância do voto para a democracia não se nega a continuar discutindo sobre o tema, mas exige que essa discussão seja feita de forma séria, sem fanatismos e com respeito às instituições.

Como os prisioneiros de Auschwitz iremos resistir. Receberemos, ainda que nos sejam amargos, os beijos das verdades que impedirão o nosso governo de nos transformarem em estúpidos.  Nos tornaremos aptos a escrutinar discursos, não porque desejam, mas porque mentiras, ainda que repetidas muitas vezes, continuarão para nós sendo mentiras. Marcharemos contra os tanques de guerra e nos oporemos a toda e qualquer ameaça à democracia, não porque deixamos de reconhecer as falhas do nosso regime político, mas por não termos criado algo melhor para resistir ao voluntarismo autoritário que se apodera das nações e as destroem.