A austríaca Natascha Kampusch, ao examinar a forma como a sociedade tratou o drama por ela vivido, chegou à seguinte conclusão: ‘nossa sociedade precisa de criminosos como Wolfgang Priklopil para dar um rosto ao mal e afastá-lo dela mesma. É preciso ver imagens desses porões para que não se vejam os muitos lares em que a violência ergue sua face burguesa e conformista’.
Kampusch foi sequestrada por Priklopil aos dez anos de idade e ficou no cativeiro por oito anos, sofrendo todo tipo de violência. Em agosto de 2006 conseguiu fugir, desde então cuida para não ver sua história ser tratada com o sensacionalismo que desfiguraria a realidade sobre a violência contra as mulheres, presente em todos os países. Para ela, a sociedade usa as vítimas de casos como o dela, ‘para se despir da responsabilidade pelas muitas vítimas sem nomes dos crimes praticados diariamente, vítimas que não recebem ajuda, mesmo quando pedem’.
Maria da Penha, que hoje tem seu nome em lei e em patrulhas policiais, em 1998 precisou recorrer à Comissão Interamericana de Direitos Humanos para findar a omissão do estado brasileiro em relação ao seu caso, depois do agressor ter atentado duas vezes contra sua vida. Apesar do litígio internacional, o Brasil continuou em silêncio e em 2001 foi responsabilizado por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica praticada contra as mulheres brasileiras.
Hoje, uma em cada três mulheres no mundo – cerca de 736 milhões de pessoas – é submetida à violência física ou sexual por parte de seu parceiro ou violência sexual por parte de um não parceiro, conforme dados da Organização Mundial da Saúde. Os índices elevados levaram Tedros Adhanom, diretor-geral da OMS, a reconhecer o caráter endêmico, o agravamento durante a pandemia e a necessidade de atuação conjunta dos governos, comunidades e indivíduos para mudar o quadro atual.
No Brasil, estudos divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública também apontam para o crescimento do número de feminicídio, em 2020, um a cada dois dias; para a diminuição dos registros dos demais crimes cometidos contra mulheres e para menor distribuição de medidas protetivas, em razão do isolamento social. Os dados da Secretaria de Segurança Pública de Alagoas ratificam estas estatísticas. Cresceu em 10% os crimes violentos, letais e intencionais tendo mulheres como vítimas de janeiro a dezembro de 2020 em relação ao mesmo período de 2019.
Somado a isso, a política insana do governo federal de incentivo à aquisição de armas de fogo fez crescer em quase 700% o registro delas em Alagoas. A curva ascendente destes registros deve continuar devido a lei de autoria do Deputado Cabo Bebeto – PTC/AL, promulgada pelo presidente da Assembleia Legislativa, que diminuiu a alíquota do ICMS de 31% para 12% nas compras de armas, munições, coletes e acessórios para membros das forças policiais, inclusive na inatividade; atiradores, colecionadores e caçadores. Serão mais armas em circulação.
Por outro lado, membros das bancadas femininas no Congresso Nacional, na Assembleia de Alagoas e na Câmara de Maceió têm atuado para aprovar vários projetos de lei que tratam desde formulários de avaliação de risco até o aumento da pena para crime de feminicídio. Deputadas Federais desejam aumentar o tempo de reclusão mínima que passará de 12 para 15 anos e tornar mais rígida a progressão de regime. A liberdade condicional continuará proibida e ficará também vetada a concessão de saída temporária.
A Deputada Estadual Jó Pereira MDB/AL quer que bares, restaurantes e casas noturnas de Alagoas adotem medidas de auxílio à mulher que se sinta em situação de risco em suas dependências. E a vereadora Teca Nelma – PSDB/AL espera a aprovação de dois projetos de sua autoria. O primeiro institui o programa ‘Maria da Penha vai à escola’, que consiste em ações educativas na rede pública municipal de ensino para conscientização dos direitos constitucionais e legais das mulheres. E o segundo cria o ‘Anuário da violência doméstica e familiar contra as mulheres em Maceió’, ficando o poder executivo obrigado a divulgar estatísticas periódicas dos atendimentos a mulheres vítimas de quaisquer agressões na rede municipal de saúde e de assistência social.
Todas as iniciativas listadas são importantes para conhecermos os números; as causas e consequências dessa endemia; e para punir os crimes cometidos contra as mulheres, entretanto, permanece a certeza de que precisamos implodir as estruturas que apedrejam os Priklopils e acolhem com zelo os agressores membros de seus grupos sociais. Empoderar as vítimas é o caminho.
Lúcia Barbosa
Mestra em Gestão Pública
Autora do Livro Eleições no Brasil/2010:
uma análise dos manifestos em defesa da democracia