A Covid-19 além das perdas irreparáveis impôs uma rotina solitária que agravou a saúde física e mental até dos que por ela não foram infectados. Dentro desse cenário de dor e males difíceis de serem remediados, a arte se fez ponte levando-nos a lugares onde a poesia, os sons, as luzes e as cores nos permitiram sonhar com o futuro. Entretanto, tomando como minhas as palavras do político, poeta e escritor baiano Marighella ao falar de liberdade, alerto aos leitores que “não ficarei tão só no campo da arte”. Como ele tudo farei para exaltar a liberdade, “serenamente, alheio à própria sorte”.
As redes sociais foram palcos de muitas experiências artísticas que nos aproximaram pelas emoções. Dentre tantas vivenciadas devo dizer que acercar-se da sétima arte foi sem dúvidas a melhor delas. O grupo ‘Cinema com Amigos,’ que se formou nesse período, reúne online amigos dos amigos às sextas a noite para debater o filme visto durante a semana. Vinte e sete obras cinematográficas já foram assistidas e analisadas sobre diversos aspectos. Nesta sexta, O lobo atrás da porta, uma película brasileira nos unirá mais uma vez.
Não é nova a paixão dos brasileiros pelo cinema. No final do século 19, apesar do moralismo dos conservadores a sétima arte tornou-se espetáculo de massa no Brasil. Com a regularização da distribuição de energia elétrica no Rio de Janeiro, instalou-se na Avenida Central mais de 20 salas de Cinema. E no início de século 20, entre 1907 e 1911, o país viveu o seu primeiro grande ciclo de produção nacional. Portanto, a sétima arte chegou aqui logo depois de sua criação pelos irmãos Lumiére em 1895, na França.
De lá pra cá o cinema brasileiro experimentou altos e baixos, sem nunca desisti de ser grande. Exemplo disso foi a estreia nessa semana, com a maior parte dos ingressos vendidos e em algumas salas esgotados, de uma nova produção da nossa indústria cinematográfica, MARIGHELLA, de Wagner Moura.
O filme baseado no livro do jornalista Mário Magalhães – Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo – traz a militância do protagonista, interpretado por Seu Jorge, que o levou a ser perseguido politicamente e preso algumas vezes. Para Moura, este é um filme de amor porque “fala muito sobre o que você tem que abrir mão por algo que você acredita e ama”. Amor que foi exaltado em vida por Marighella – “Amor que não se detém ante nenhum obstáculo, e pode mesmo existir quando não se é livre”
Moura considera que a obra traz incômodos e obriga quem o assiste a tomar posições. Não é à toa que termina com um personagem jovem dizendo: essa é a minha luta, qual é a sua? O que você vai fazer da sua vida? Marighella responderia a respeito de sua luta -“queira-te eu tanto, e de tal modo em suma, que não exista força humana alguma que esta paixão embriagadora dome”.
De fato o filme incomodou o governo brasileiro, que impôs inúmeros obstáculos para impedir sua estreia. Para o jornalista Mário Magalhães isso se deu devido a impossibilidade de conciliação entre as ideias e ações de Marighella e as do Presidente Bolsonaro. Enquanto o último se declara a favor da tortura e considera ‘mimimi’ o feminicídio, o primeiro foi torturado durante 21 dias, defendeu as bandeiras históricas do movimento das mulheres e para elas dedicou o poema ‘O Perfume’.
Somado a isso há uma cena que nos lembra a triste realidade que vivemos. Ao conversar com um companheiro de luta que insistia em aguardar o melhor momento para agir, Marighella indaga “com quantos cadáveres uma situação se define?
Diante de mais de 600 mil mortes por Covid-19 e tendo a CPI indiciado o presidente por nove crimes pela forma como conduziu o combate a pandemia, tal questionamento gera um significativo desconforto aos negacionistas, aos indutores da imunização de rebanho e aos propagadores de tratamentos ineficazes, mas também para os que, por ofício, serão obrigados a encontrarem a resposta. Por isso as dificuldades impostas para estrear no Brasil, fala mais do governo que temos do que do filme, como afirmou Moura.
E Marighella diria que temos um País de uma nota só. “A passagem subiu, o leite acabou, a criança morreu, a carne sumiu, o IPM prendeu, o DOPS torturou, o deputado cedeu, a linha dura vetou, a censura proibiu, o governo entregou, o desemprego cresceu, a carestia aumentou, o Nordeste encolheu, o país resvalou. Mas não temos tempo para ter medo”.