A Constituição Federal – CF brasileira expressa no seu primeiro artigo a escolha pela república como forma de governo. Infere-se, portanto, que o constituinte desejou vê a formação democrática da vontade realizando-se na forma de um auto-entendimento ético-político, onde o conteúdo da deliberação deve ter o respaldo de um consenso entre os sujeitos privados. Ou seja, participação ativa da sociedade nas decisões do Estado.
No artigo quinto, a CF garante a igualdade de todos perante a lei e a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade que são valores do liberalismo clássico. Aqui optou-se pela formação política da vontade ancorada nestas liberdades negativas, que são direitos subjetivos, tendo o estado o papel apenas de garantidor destes mesmos direitos.
O teórico político inglês David Held em seu livro ‘Modelos de Democracia’ reconheceu a importância dos direitos protegidos e garantidos constitucionalmente; do pluralismo; da concorrência entre plataformas políticas diversas, enfim, dos princípios fundamentais do liberalismo, entretanto, criticou o desleixo com o qual os liberais cuidam das relações entre os direitos formais e os reais; o inadequado tratamento dado a liberdade e a igualdade, que na prática não se realizam; a crença questionável de que partidos políticos, da forma como estão concebidos, representam a ligação entre Estado e sociedade e de que a política é da esfera dos governos. Segundo ele, nesse cenário as condições para a participação, as formas de controle e os processos decisórios democráticos não estão bem delineados.
Já Norberto Bobbio, filósofo italiano, no livro ‘Liberalismo e Democracia’ chamou atenção para a histórica defesa dos liberais na participação restrita aos proprietários nos negócios do Estado, em contraposição ao governo de todos defendidos pelos democratas, e da crise provocada no pensamento liberal quando da ampliação do direito ao voto. Para ele o Estado liberal, apoiado na doutrina que concebe o homem como ser dotado de direitos naturais e invioláveis, originou-se da busca de uma convivência pacífica a partir de uma condição de liberdade individual plena, numa sociedade política limitada em sua soberania e organizada com o fim último de proteger estes direitos. Sendo assim é restrito nas suas funções, o que faz dele um Estado mínimo, em oposição ao Estado de bem estar social e, limitado em seus poderes o que o torna um Estado de direito compatível apenas com a dimensão jurídica institucional da democracia moderna. Aqui o cidadão é livre e igual perante a lei, mas não é soberano.
Dessas deficiências surge uma situação complexa que apresenta duas faces. De um lado há uma sociedade onde não se possibilita o entendimento com relação às questões políticas, onde não há um estado de coisas favorável a participação efetiva e a igualdade do voto. Do outro a estrutura do estado democrático liberal não gera uma força organizativa que possa regular adequadamente os centros do poder civil. Surgem então excrescências como o orçamento secreto operado por membros do atual Congresso e ministros do Governo Federal, um sequestro da coisa pública para beneficiar grupos de interesses com acesso a estes centros de poder.
No Brasil, que escolheu ser uma república desde 1891, um dos exemplos mais claro da apropriação da coisa pública foi a política café com leite que levava ao comando central, alternadamente, um paulista ou um mineiro. Nesse momento, como forma de manter o modelo oligárquico, passou-se a defender que somente uma minoria estaria qualificada para o exercício da política. Os resultados eleitorais eram às vezes absurdos, sem nenhuma relação com o tamanho do eleitorado.
Positivistas e atrelados ao liberalismo econômico, os liberais não se preocuparam com a debilidade do sistema representativo naquele momento, e acabaram por conviver com o autoritarismo que frequentemente decretava estado de sítio. Antes, não se incomodaram com o regime de escravidão, no Brasil Império; e na República Nova estiveram sempre na linha de frente dos golpes que levaram à deposição governos democraticamente eleitos.
Assim, temos constitucionalmente uma República, e não se tem a ‘coisa pública’. Prova disso está nas condenações por corrupção envolvendo membros dos poderes constitucionais e no distanciamento do povo das decisões estatais. Da mesma forma, a escolha pelo liberalismo é histórica mas sequer há igualdade perante a Lei e respeito ao resultado das eleições. Ou seja, ou não se tem a exata compreensão dos termos, ou não se acredita na capacidade dos brasileiros de construir o país normativamente delineado. Se for ausência de entendimento, a prática política mudará à medida que este for alcançado. Se for descrença na aptidão nacional, é possível pensar em regressão do regime.
Fato é que pensar a forma de governo republicano inserida na atual Constituição brasileira como norma programática traz a responsabilização do aperfeiçoamento da prática política, o que infelizmente não se tem visto, sobretudo nos últimos anos. Desse modo não se pode denominar o país como uma República nem como Estado de direito, porque isso seria se opor frontalmente a pressupostos que se impuseram como incontestáveis no pensamento mundial.