Pode se julgar o passado com o olhar do presente? É a pergunta que a testemunha me fez quando discutíamos o comportamento de Zeca Chapéu Grande, personagem de Torto Arado, livro do autor baiano Itamar Vieira Júnior.
Torto Arado é um romance, muito bem escrito, cuja trama se desenvolve em torno de uma família, no interior da Bahia, empurrada para o sistema de servidão, como foram os demais descendentes de escravos no Brasil. É um livro que ao iniciar sua leitura você já sabe que não se afastará dele até chegar a última página.
Zeca Chapéu Grande trabalha de sol a sol, grato ao Senhor da terra por permitir que ali construísse um barraco para viver com sua família e pudesse alimenta-la com parte do que produziam, no pedacinho de terra em torno da pobre moradia. Líder religioso, era responsável por nutrir a fé do seu povo, curar suas dores e feridas e, manter a paz do lugar, o que significava ensina-lo a suportar todas as injustiças praticadas pelo proprietário da fazenda e seu capataz, em total submissão.
Antes de prosseguirmos, sinto-me na obrigação de dizer que o parágrafo acima é injusto com o romance, ele não se limita a isso. São as semelhanças de Zeca Chapéu Grande com as memórias da testemunha da servidão e o espaço reservado para esse artigo que determinaram esta síntese.
Impaciente ela insiste: podemos condená-lo?
Conta-me que a identificação com o texto de Torto Arado foi imediata e levou-a à compreensão de momentos de sua própria vida. Ela tinha assistido cenas semelhantes às do romance, na sua infância, mas também acompanhou uma batalha silenciosa contra aquilo.
Até a bem pouco tempo, disse-me ela, perguntava-se por que pessoas com as quais ela tinha pouca ou nenhuma ligação a tratavam com tanto carinho. Agora sabe: é herdeira da luta contra a servidão. Seu pai, homem de aparência frágil, passos lentos, voz mansa, carregava as dores do mundo no peito, muitas delas tinha sentindo também na pele devido a orfandade na mais tenra idade, e guardava um latente desejo de justiça.
Não foram poucas as vezes em que silenciosa assistiu, sem entender, as conversas sobre a necessidade de inserir àquelas pessoas no sistema de proteção social existente no país. A peregrinação começara entre os familiares, donos de extensas faixas de terra. Em alguns momentos os discursos endureciam, nunca os dele. Permanecia sereno. Jamais alterava a voz.
Como a pedir perdão, com a voz cheia de emoção, a testemunha da servidão confessa: raras foram as suas vitórias.
Lembra-se de quando, ainda criança, conheceu a doce serva. Ela devia ter algo em torno de 30 anos. Abria um largo sorriso sempre que ali chegavam, demorava-se pouco, corria para seus afazeres. Somente quando aos gritos era chamada, aparecia, para logo depois sumir. Seu pai cumpria o mesmo ritual, antes de se despedir dos donos da casa se dirigia com ela até a doce serva para agradecerem. Até hoje guarda consigo os cheiros e sabores daquela cozinha.
Uma das poucas a se aposentar, já idosa e sem forças para o trabalho doméstico, a doce serva contribuía com seus proventos no pagamento das contas da casa de seus senhores, agora sem terras e sem fortuna. Nunca entendeu aquilo. Em tempo algum havia presenciado, nas visitas feitas àquela família, qualquer sinal de respeito à pessoa que lhe servia. Mas ela continuava ali.
No leito de morte, a dócil serva tinha um semblante de paz, havia quase um sorriso. Ficou a pensar se ela estava feliz. Será que tinha experimentado algum prazer antes da morte? O choro dos que se fizeram adultos sob os seus cuidados e os gritos de sua patroa – “venham pra cá. Não é bom ficar perto da defunta” – interromperam seus pensamentos e agora passava a questiona-la – por que continuou aqui? Não conseguiu sair do lado dela. Suplicava por uma explicação: por que continuou aqui?
Numa segunda confissão me diz que sua herança não é um fardo, pelo contrário, mas cobra dela uma potência que não possui. E caso condenássemos Zeca Chapéu Grande, o crime seria ele não ter a força que julgamos adequada para se opor às agressões sofridas. E a condenação dele seria estendida a doce serva e a todos as pessoas que lutam diariamente para sobreviverem sob as mais variadas formas de opressão.
Segura as minhas mãos e olhando nos meus olhos diz: “jamais esqueça – a culpa da opressão foi, é e sempre será do opressor”. Aceno com a cabeça para mostrar-lhe minha aprovação. Ela segue: “quanto se podemos julgar o passado com o olhar do presente, defendo que nesse caso devemos, porque isso nos manterá em permanente oposição aos que atentam contra a dignidade humana”.