A história ocorreu em Craíbas, ainda quando era simples terreno comprado pela família Nunes, de Flores, Pernambuco, em 1860. De lá para os dias de hoje, inúmeros Nunes participaram e participam de Arapiraca, na agricultura, na política, no comércio, nas letras. Relembremos, aqui, Josafá Nunes (fumicultor), Inês Nunes Lúcio (esposa do senador João Lúcio da Silva), João Nunes (que foi vereador), Ronaldo Nunes (escrevente cartorário), Sebastião e Antônio Nunes (agricultores do sítio Boa Vista), Eufrosino Nunes (pai do ex-deputado Talvane Albuquerque), Renilde Nunes (professora, que foi do SINTEAL – sindicato dos professores), Regina Nunes (que foi coordenadora de ensino estadual), Solano Nunes (agricultor), e muitos outros.
O início em Carahybas … dos Nunes
A chegada dos Nunes na região de Carahybas deu-se em meados de 1860, ou, como muitos querem ser mais precisos, em 1865, quando Manoel Nunes da Silva Santos, fugindo da inclemente seca que assolava o sertão pernambucano, reuniu a família (a mulher, Josefa Teixeira da Silva, e os filhos Antônio Nunes da Silva, casado com Maria José da Conceição, Joana Nunes da Silva, casada com Pedro Gama da Silva, Francisca Nunes da Silva, casada com Roberto José dos Santos, Apolônia Nunes da Silva, casada com Roberto da Ressurreição da Silva, João Nunes da Silva, casado com Maria Francisca da Conceição, José Nunes da Silva, casado com Maria Tereza Nunes da Silva, Pedro Nunes da Silva, casado com Maria Madalena da Silva, Ana Maria da Silva, casada com Antônio Tomás da Silva, e Josefa Nunes da Silva, casada com Felipe José dos Santos) e vieram morar e trabalhar em Alagoas (*). A Josefa, até hoje ninguém sabe explicar, também era conhecida como Clara Maria da Conceição. Quais os motivos para usar dois nomes? Não se sabe. Aqui, sempre será Clara.
O velho patriarca, com seus nove filhos, genros, noras e netos, adquiriu as vastas terras de Felipe Nogueira Lima por 50 mil contos de réis. Deslocando-se para Alagoas, passaram a trabalhar as pobres terras sol a pino, dia após dia. Era fins do século XVII. A posse e o domínio de Carahybas por parte do pernambucano de Flores deu-se até 1892, quando, morrendo sua esposa, Manoel Nunes dividiu a propriedade entre filhos e genros.
Não é de se estranhar que as terras de Carahybas foram divididas entre os filhos e os genros. As filhas ficavam à parte da herança, o que demonstra o poder patriarcal vigente à época. Desta forma, Felipe José dos Santos, que era casado com Clara Maria da Conceição e uma das figuras importantes desta história, herda terras em Craíbas, constroi sua casa e trabalha a terra. Craíbas, ou Carahybas, palavra de origem tupi, tem o nome ligado a uma árvore do ramo das bignoniáceas, muito comum na região. As terras que deram origem ao atual município de Craíbas estão situadas na mesorregião do agreste alagoano, fazendo limite com os municípios de Igaci, Arapiraca, Jaramataia, Major Isidoro, Girau do Ponciano e Lagoa da Canoa. Faz parte da microrrregião de Arapiraca.
Anjos assassinados
Ela tinha tão somente dois anos de idade. Caminhava tropecamente, agarrando-se às paredes ou objetos para não cair. Muitas vezes, engatinhava, pois era mais fácil se deslocar com pés e mãos no chão da casa de taipa de seus pais. As palavras, papá e mamã, foram as primeiras. Tudo começou em janeiro e terrminou em abril do ano da graça de 1902.
Cecília, primeiro anjo a morrer, uma entre quatorze, com dois anos, era a penúltima filha de Felipe José dos Santos e Clara Maria da Conceição. Ele, como já dito, genro de Manoel Nunes da Silva Santos, e também natural do Sítio dos Nunes, município de Flores, em Pernambuco.
Os outros anjos foram:
Manoel (da Conceição), com cinco anos, mal balbuciava as primeiras palavras. Raquítico, sofria de asma, puxando muito pelo ar do peito, tinha cabelos encarocalados. Foi o segundo a morrer, três dias após Cecília.
Maria (da Conceição), tinha três anos quando morreu três dias após Manoel. Thomázia Maria (da Conceição), era um pouco mais velha que os primeiros a morrer. Tinha oito anos quando apareceu morta.
Maria Angélica, morreu três dias depois de Thomázia. Tinha apenas três meses de idade. Antônia (Maria Nunes), filha de Antônio Raymundo e Maria Antônia. Prima das cinco primeiras, tinha três meses de idade, quando morreu, três dias após Maria Angélica.
Josepha (Maria da Conceição), com nove anos, morreu um dia após Antônia. Joana Maria (da Conceição), com dez anos, morreu um dia após Josepha no mesmo local onde morreu Thomázia.
Rozendo (Nunes), com sete meses, apareceu morto na própria casa dos pais. era irmão de Maria. Izabel (Maria da Conceição), com 12 anos, morreu no mesmo quarto onde dormia com as irmãs e oito dias após a morte de Rozendo.
José Joana (Nunes da Silva), dois anos, filho de Manoel Nunes e Maria Thereza da Conceição. Primo das outras crianças, apareceu morto oito dias após Rozendo e logo depois da chegada de seu tio, Felipe, vindo de Juazeiro do Ceará, onde foi visitar parentes.
Joana (Nunes da Conceição), com três anos, era irmã de José e morreu no mesmo dia daquele. Antônia (Maria da Silva), com quatro anos de idade, era filha de João Nunes da Silva e Maria Francisca. Morreu oito dias após José.
Pedro (Nunes da Silva), irmão de Antônia, com cinco anos, morreu no mesmo dia que esta, no mesmo momento que o corpo estava sendo levado para o cemitério local.
Mas, que motivos, ou mesmo, quais as causas das mortes de tantas crianças?
Para Clara, sem dúvida, estavam mais que claras as mortes repentinas dos anjinhos. Havia sido seu pedido ao bom Deus. E ela repetiu para sí:
–Que o Senhor, meu bom Deus, não me leve deste mundo sem que antes leve meus filhinhos. Pois este mundo é muito perigoso para deixá-los sozinhos.
Ora, as mortes de outras crianças, juntas com as de Clara, não despertaram nela quaisquer outros pensamentos. Estava fixada na idéia original. E, porisso mesmo, grata a Deus.
A história de Antônia
Na primeira vez que foi entrevistada por membros do jornal A TRIBUNA, no dia 24 de abril, Antônia, nos seus 15 anos, se apresentava delgada, os pequenos peitos um pouco estofados, de fisionomia carregada, de conversação rude e até um pouco atrapalhada. Parecia uma pessoa sem espírito, tímida, pouco à vontade na cada de detenção. Era uma menina-moça da roça.
Disse ela à TRIBUNA:
“Meu pai, Felipe, vive com minha mãe na perfeita amizade, e mais dos dias iam à casa de farinha, que ficava a uns 50 passos da nossa casa, raspar mandioca. Minha irmã Rosa sempre acompanha meus pais, e eu, como mais velha, ficava tomando conta dos irmãos.
“Na casa de farinha, que era de toda a família, sempre se achava uma tia, irmã de minha mãe. Daí, saia muita conversa. Numa dessas conversas, vim saber que minha mãe havia desgostado da atitude de um tal João, que havia raptado uma moça que morava alí perto. Raptou e depois maltratava muito a coitada!
“Meu pai, ouvindo a tal conversa entre minha mãe e sua irmã, repeliu prontamente minha mãe, dizendo que ela não tinha nada a ver com a história.
“Minha mãe entronchou a cara! Ela parecia ter muito ciúme de meu pai.
“Um dia, minha mãe está adoentada, de cama, e conversava com duas de suas irmãs, relatando que tinha feito um pedido a Deus, Dizia que não tirasse sua vida desse mundo sem que primeiro não levasse seus filhos, pois esse mundo é ruim, cheio de perigo.
“Fiquei a ruminar!
“Ora, pensei Minha mãe vai morrer logo, ela está muito doente. E ela pediu a Deus para que venha buscar seus filhos pequenos antes dela ir. Por que não atender minha mãe? Por que não ajudá-la nesta empreitada?
“Matutei muitas vezes. E, com efeito, dias depois saíram todos para a casa de farinha, ficando só eu, a lavar pratos, e meus outros irmãos. Cecília, com 11 anos, estava entre eles. Aí, surgiu-me um pensamento: fazer. Peguei seu pescoço com as duas mãos, arroxei, arroxei, até que ela colocou a língua para fora. Nem sinal de vida.
“Chamei meus outros irmãos, todos pequeninos, e disse: calados, se vocês falarem, eu farei o mesmo com cada um. Ouviram?
“O silêncio foi total.
“Após a morte de Cecília, seguiram-se mais dois, Manoel, com cinco anos, era magrinho, magrinho, quase não falava, e Maria, com três anos. Do primeiro ao terceiro, foi uma distância de seis dias.
“Minha mãe, quando viu os filhos mortos, não se conteve. E disse: ”foi feito com muita fé”, acreditando que suas preces a Deus estavam sendo atendidas.
Neste momento, Antônia titubiou, parecendo não estar segura com suas idéias. Ela parou, respirou profundo, e continuou:
“Olha, foram 14, entre irmãos e primos. Três eram de meu tio João Nunes; dois, do outro tio, Manoel Nunes; um, do tio Antônio Raymundo, e oito de meus pais.”
Durante todo o tempo, Antônia contou à TRIBUNA que após a morte da 12ª criança, seus parentes acreditavam piamente que “algo ruim” havia passado pelo lugar. “Um vento,” diziam.
Depois de ouvir Antônia, a reportagem de A TRIBUNA foi ouvir Rosa que, fisionomia simpática, de conversação desembaraçada para uma analfabeta, narrou os fatos. Ora, repetiu quase sempre o que sua irmã havia dito, acrescentando que não revelou as mortes logo que foi sabedora, ou mesmo participou, porque conhecia o gênio forte da irmã. E tinha medo de morrer, pois sempre era ameaçada.
As respostas às perguntas eram quase que iguais, sem terem sido preparadas pelas duas. A tudo, o pai Felipe continuava mudo, sem palavras. E sem gestos.
A caminho do padre Cícero
A vida volta ao normal em Carahybas dos Nunes. Felipe, em seu quinhão herdado do sogro Manoel Nunes, constante de uma casa de taipa, de chão batido, um quarto, uma sala, uma cozinha com fogão a lenha, porta e janela na frente, porta nos fundos e no quintal uma cazinha para as necessidades, sempre se reunia, principalmente à noite, com as filhas Antônia e Rosa. Reunir é o termo Eles simplesmente sentavam-se, calados, sempre calados, ao redor da pequena mesa na sala. No centro, um candeeiro clareava majestoso.
Durante todo esse tempo, sem se comunicar com as filhas, Felipe matutava: “quero sair daquí. Quero ir embora daqui. Vou seguir meu caminho. Tenho parentes em Juazeiro do Norte. Vou prá lá!.
Todos os dias ele pensava em ir embora. O jeito de olhar atravessado que muitos olhavam suas filhas não agradava a Felipe. Era como se fosse uma condenação diária. As mortes de Clara e dos filhos não lhe saiam da cabeça, Martelavam o cucuruco.
Aos poucos, Felipe foi se preparando: olhava os arreios do carro de boi, olhava os cambitos, a canga (azeitava com banha de bode), tratava bem os dois bois. Devagarinho, fez uma torda e colocou no carro – era para aplacar o sol à pino dos dias de viagem. Decidiu-se:ia para Juazeiro do Norte.
Era o ano de 1906.
Uma madrugada, acordou as filhas, colocou dois sacos de farinha no estrado do carro de boi, uma foice, alguns trecos de roupa dos três, metade de um bode assado (dentro de um saco com farinha), um pouco de café torrado, um pote com água de beber e pronto. Antes, Felipe já tinha apalavrado e vendido seu lote de terra ao cunhado Antônio Nunes da Silva. Além do mais, Juazeiro do Norte já era conhecida dele, pois em 1901 já tinha feito viagem para receber as bênçãos do padre Cícero Romão Batista. A viagem, em sí, durou quase um mês.
De Carahybas foram para Inajá, depois Custódia, passasam pelo Cruzeiro do Sul, Bom Nome, Jati e Brejo Santos; depois, seguiram caminho por Milagres, Missão Vela, Missão Nova (hoje município de Missão Velha), Barbalha até chegarem a Juazeiro. Em Missão Velha, a mais ou menos três quilômetros da sede, Felipe e os três filhos descansaram ao lado de uma bela cachoeira, hoje conhecida como cachoeira de Missão Velha. Alí, eles encontraram água limpa para beber e se lavar (Ah, que descanso, dezenas de dias, dia e noite pelo mato a dentro, pouca água para as necessidades. Agora, sim, relaxaram).
Após o descanso na cachoeira de Missão Velha, o carro de bois foi dirigido para a regiâo de Salamanca, a Barbalha de hoje. Mais uma parada, agora ao lado da Igreja de Santo Antônio do Toco, em Missão Nova, construída por João Mendes Lobato e Lira, em 1725, e onde se encontra seu corpo alí enterrado em 1793 (*). Rezaram aos pés da imagem do santo. Rezaram em silêncio: Felipe, Antônia, Rosa e Domingos.
Em Juazeiro do Norte viviam alguns parentes de Felipe, alí chegados pela religiosidade: suas irmãs, Maria Angélica (era beata), e Maria Januária, além da prima Maria Rosa.
Finalmente, num sol escaldante de início de tarde, a caravana dos Nunes chega a Juazeiro, na mesma rua onde morava o padre Cícero (hoje rua São Pedro, que sai em linha reta desde a igreja de Nossa Senhora das Dores até no alto da cidade, onde esta se inicia). No encontro com as irmãs, notícias daqui e dalí, Felipe conta a seus parentes a tragédia de Carahybas, as mortes de sua mulher, de seus filhos e das outras criancinhas.
Já instalado de início na casa das irmãs, durante as horas de conversação, Felipe, demonstrando um homem falante, ao contrário do tempo das Alagoas, quer saber como é pessoalmente o padre Cícero Romão Batista.
– Não é pessoa difícil, diz Maria Angélica, a beata:
– Encontro o padre todos os dias. É afável, amigo e severo, porém é um homem bom. É um homem exigente. Prometo levá-lo ao padre.
Passaram-se vários dias. Felipe, com o pouco dinheiro amealhado nas Alagoas, arrenda um pedaço de terra no sítio Brejo Seco, que fica nos arredores de Juazeiro. E começa a trabalhar a terra, sempre com suas duas filhas. Domingos, o caçula, ficava de fora, tomando conta dos dois bois.
Um belo dia de sexta-feira, lá pelas dez horas, padre Cícero Romão Batista (*) recebeu em sua casa a Felipe, levado que foi por suas irmãs e pela prima Maria Rosa. O padre estava a se balançar numa cadeira de vime. Como sempre, usava uma batina preta, surrada.
– Bom dia, meu filho! Você é irmão de Maria Angélica e de Maria Januária? Muito bem. Elas disseram que você quer muito falar comigo. Senta, meu filho!
Felipe senta-se numa cadeira feita de jaqueira, muito pesada, em frente ao padre Cícero.
-Ah, seu padre, tenho muita coisa a contar, pedir sua bênção e seu perdão .Prá mim e para minhas filhas, Antônia e Rosa. Sei que o senhor vai interceder junto ao Pai Santíssimo e Nossa Senhora das Dores por minha família.
Disse o padre:
-Vai, meu filho, conta sua história.
E Felipe desandou afalar:
-Depois que minha sogra morreu, e herdei umas terras no lugar chamado Carahybas, nas Alagoas, a vida corria mansa. Cheio de filhos, de dois meses a 14 anos. Minha mulher, a Clara, que sempre se mostrou ciumento, reclamava sempre da vida, e da minha vida. Ela achava que ia morrer logo, mas padre, dizia que não queria morrer e deixar seus filhos neste mundo sozinhos, sem ela para cuidar.
-Um dia, de tanto contar esta história, Antônia, minha filha mais velha, ouviu, por trás da porta, o pedido da mãe -“Não quero morrer antes de meus filhos. Que eles morram primeiro, para não ficar neste mundo injusto”.
-Antônia, padre, quis fazer os gostos da mãe. E passou a matar os irmãos, sempre apertando as goelas. Depois de um tempo, teve ajuda de Rosa, minha outra filha de 12 anos (Antônia ameaçou por diversas vezes Rosa, de matá-la caso não a ajudasse). Padre, vou dizer os nomes dos anjinhos mortos: Cecília, Manoel, Maria, Thomazia, Maria Angélica, Josepha, Antônia, Joana Maria, Rozendo, Isabel, José Joana, Joana, Antônia (filha de uma cunhada) e Pedro. Todos eram filhos de nossa família. Quando não eram meus, eram filhos de irmãs de Clara.
-Foi uma desgraça, padre Cícero. No início, diziam que tina sido um vento que passara pela região, matando todas as crianças. Pedidos a São Sebastião, muita reza foi feita. E nada, padre. A única coisa de certeza era que mais dia menos dia morria um anjinho.
-E o povo passou a desconfiar. Minha mulher Clara, sofrendo muito, foi ao Brejo dos Sulinos, na capela de Nossa Senhora da Conceição. se confessar e pedir perdão a Deu e a Nossa Senhora, acreditando que as mortes foram devido a seu pedido. Foi abençoada pelo padre e recebeu a comunhão.
-Depois, veio tudo. Eu, Clara, Antônia e Rosa fomos detidos em Traipú, onde Clara morreu dentro da cadeia. Depois, fomos levados para Maceió, a mando do governador (alí, vários médicos estudaram minhas filhas) e disseram que elas eram inocentes.
-Olha, padre Cícero, depois de tanta aperreação, Antônia contou tudo: que tinha matado os irmãos e os primos para salva a mãe do fogo do inferno. Rosa disse o mesmo. Hoje, aqui estou com as duas e meu filho Domingos, nesta terra santa, pedindo perdão a Deus e a Nossa Senhora das Dores para aliviar a vida de minhas filhas.
-Padre Cícero, só o senhor pode interceder pela minha família. Quero sua bênção, padre.
Felipe estava extenuado, mas calmo. O suor escorria pela fronte. Padre Cícero Romão Batista não moveu nada no corpo. Com os olhos fechados desde o início da história de Felipe, assim continuou por um bom tempo. Respirou fundo, abriu os olhos, fixou aquele homem sofredor, e disse:
-Meu filho, tudo pode em nome de Deus. Quero você e suas duas filhas vão até a igreja de Nossa Senhora das Dores amanhã, bem cedinho. Você sabe rezar? Suas filhas sabem rezar?
-Sabem, padre. Minhas filhas sabem rezar porque foram ensinadas pela mãe. E minha mãe também me ensinou a rezar.
-Pois bem, amanhã, bem cedinho, lá pelas cinco horas, quero vocês na igreja. Assistam a missa e depois me procurem.
-Vá em paz, e Nosso Senhor o acompanha, meu filho.
Felipe beijou o dorso da mão direita do padre Cícero, fez o sinal da cruz, começando na testa até abaixo da boca, e saiu.
Cedinho, muito cedinho, ainda escuro, a família Nunes, inclusive o menino Domingos, estava entre dezenas de fiéis sentada nas longas cadeiras da igreja de Nossa Senhora das Dores. Alguns dos romeiros (como são chamados aqueles que visitavam Juazeiro do Norte para falar como padre Cícero Romão Batista), carregavam chapéus de palha; as mulheres, em grande maioria, tinham véus que iam até os ombros, e que cobriam as cabeças.
Padre Cícero Romão Batista, seguido por dois coroinhas, sobe os degraus do altar e, de costas para o povo mas de frente para o altar, começa a missa, que durou mais ou menos hora e meia.
Ao fim, após a bênção final, o padre retira as vestes litúrgicas da missa, e novamente com sua batina preta e rota, olha rapidamente para os fiéis que ficaram ao redor do altar, encontra as irmãs, a prima Maria Rosa, Felipe e seus três jovens, que identificou como os filhos daquele homem que havia lhe contado uma triste história, faz um gesto com a cabeça e dirige-se, novamente, ao altar.
-Venham vocês, coloque-se um ao lado do outro, disse o padre.
Todos os quatro ficaram lado a lado. Serenos. E ao redor deles, os curiosos. O padre falou:
-In nomine Patris, et Fílii, et Spíritus Sancti. Amen (Em nome do Pai, e do Filho, e Espírito Santo. Amém).
Felipe e os filhos responderam:
-Abençoai-nos padre, porque pecamos
Padre Cícero estende as mãos sobre as cabeças de Felipe e seus filhos, e, após levar o dedão da mão direita às suas testas, fazendo o sinal da cruz em cada, exclama:
-Dominus noster Jesus Christus te absolvat; et ego auctoritate ipsius te absolvo ab omni vinculo excommunicationis (suspensionis) et interdicti no quantum possum et indiges tu. Deinde, vos absolvo ego uma peccatis tuis in nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sancti. Amen.
(Que nosso Senhor Jesus Cristo te absolva; e por Sua autoridade eu te absolvo de todo vínculo de excomunhão (suspensão) e interdito, tanto quanto meu poder permitir e suas necessidades exigirem. [ fazendo o sinal da cruz: ] Então eu te absolvo de teus pecados em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém)
Todos o ouvem contritos e, calados, abaixam suas cabeças. O padre Cícero Romão Batistas, por fim, diz:
-Vão em paz. O senhor vos acompanhe. Nossa Senhora das Dores vos guie. Não pequem mais.
E, mais uma vez, faz o sinal da cruz:
A posição do governador Euclydes Malta
Com base nos estudos médicos e o Art. 29º, o governador Euclydes Vieira Malta não teve dúvidas, considerando inimputáveis Antônia e Rosa. Eram, portanto, tidos como inimputáveis (incapazes de saber o certo e o errado), porque a responsabilidade criminal começava somente a partir dos catorze anos. E determinou que a justiça estadual, através da competente autoridade processante, instaurasse o processo. O juiz de direito da comarcade Traipú, em 22 de dezembro de 1902, as despronunciou. Devolvendo-as ao pai Felipe.
Neste mesmo fim de ano,em mensagem ao Congresso Alagoano (**), o governador comentou os crimes ocorridos em Carahybas e o parecer médico, expressando que se chegou à conclusão de que Antônia possuia “monomania” (***) e pela falta de determinação de Rosa. Disse o governador (****): “Deploro não possuirmos uma casa ou estabelecimento, onde podessem ser convenientemente observados e tratados indivíduos em tais condições, e mesmo educados no caso no caso de lhes voltar a integridade da razão. Estivessem em melhor pé as nossas finanças e eu não teria dúvida em vos pedir meios, para que se fundasse mais esta pia instituição”.
E mais:
“Mandei que com este parecer, fossem ellas remetidas à autoridade processante daquele município”.
Com a soltura de Antônia e Rosa, a volta a Carahybas, e a consequente entrega a seu pai, acreditava o governador que tudo estaria resolvido. E assim foi.
Personagens
Governador de Alagoas: Euclydes Vieira Malta – mandados de 1900/1903 e de 1906/1909
Secretário do Interior de Alagoas: Dr. Joaquim Paulo Vieira Malta
Delegado de Polícia de Traipú, município de Alagoas – cabo Laudelino Barbosa
Juiz substituto da Comarca de Limoeiro de Anadia (onde foram denunciadas as homicidas e os pais) – Antônio Barboza da Silva
Padre que recebeu confissão de Clara Maria da Conceição em Brejo dos Teófilos (Brejo do capitão Sulino) – Pedro Vital da Silva
Comissão de médicos que examinou as duas irmãs:
- Manoel Sampaio Marques, alagoano,médico, formado em 1891 pela Faculdade de Medicina, Phamacia e Odontologia da Bahia. Foi um dos fundadores da Sociedade de Medicina de Alagoas. Intendente Municipal e professor do Lyceu Alagoano e diretor da Caixa Comercial;
- Antonio Francisco de Gouveia, alagoano, médico, formado em 1887 pela Faculdade de Medicina, Pharmacia e Odontologia da Bahia, diretor geral de Instrução Pública, médico de saúde do Porto e presidente da Previdência Alagoana ;
- Francisco Augusto da Silveira, alagoano, farmacêutico, formado em 1887 pela Faculdade de Medicina, Pharmacia e Odontologia da Bahia;
- Luiz Barreto Correia de Menezes, pernambucano, médico;
- Sylvio Moeda, alagoano, médico;
- Alfredo de Araujo Rego, alagoano, médico sanitarista, diretor da Instruçào Pública e diretor da Higienização e Saneamento de Maceió.
(A história da tragédia da família Nunes faz parte do livro ANJOS ASSASSINADOS, de autoria de Manoel Ferreira Lira)
Fonte: Eli Mário Magalhães e Manoel Lira
Produção Editorial: Roberto Baía e Carlo Bandeira