UM SONHO DE LIBERDADE 

Da menina que rabiscava à mulher que rascunha, desenhou-se uma trajetória de risos e choros; de construções e rompimentos; de desejos e apatias; de vitórias e derrotas que a fez um ser frágil habitado pela aspiração de ser capaz de suportar as aflições do viver.

Da menina que foi orientada a entender que gritos sem dores não contam verdades à mulher ciente de que os dedos acusatórios falam mais dos julgadores do que dos julgados, abriu-se a via para a escuta silenciosa e empática dos desejos; dos sonhos; das alegrias; das dores; dos erros…

Da menina que foi ensinada a sentir as tormentas do mundo à mulher que entendeu ser o chão frio das sarjetas, muitas vezes, o único refúgio para se viver enquanto se morre, delineou-se um caminho de compreensão e respeito às fragilidades humanas.

Da menina que jamais foi impedida de se relacionar com as diferenças à mulher que entendeu ser essa a sua herança,  firmou-se o caminho para ampliá-la e entregá-la à sua descendência e,  alegremente, ver ela reforçada pelos valores do presente.

Da menina que aprendeu não ser as suas companhias as definidoras do seu comportamento à mulher que não se furtou de construir relações com a diversidade, traçou-se a avenida de encontros com diferentes tesouros que a transformou em fiel depositária de valores inestimáveis.

Da menina instruída a não se envolver em intrigas à mulher que escolhe seus combates, fundou-se a via das mãos duplas que acolhem; acalentam; animam e a fazem, desde sempre, convicta do lado de quem deve andar. 

Da menina de mesa farta, que não conheceu a face da fome no seu entorno, à mulher que em suas andanças testemunhou a existência de milhares  de pratos vazios, gravou-se o rumo que fortaleceu a sua identidade política colorida da matiz que tinge os corações dos que não somente entendem essa dor, sabem também que a sua persistência significa a derrota do projeto coletivo construído pelas mãos que os abençoam.

Da menina que, no folclore, sonhou empunhar espada ao lado dos guerreiros vermelhos à mulher que conquistou sem grandes esforços um lugar de conforto, delineou-se um caminho de privilégios e oportunidades que aguçou seu instinto de sobrevivência acompanhado da firme crença na capacidade inata do ser humano de realizar, quando não lhe faltam as condições básicas para isso.

Da menina que recebeu incentivo do Estado para estudar em escola privada à mulher que entendeu ter participado com isso de um movimento político de enfraquecimento da escola pública, esboçou-se a via de aversão a qualquer intenção de dificultar as raríssimas possibilidades de mobilidade social ainda existentes.

Da menina que se esforçava para tracejar no papel um mundo que coubesse todas as crianças à mulher que foi derrotada nas suas intenções de dificultar as ações dos que tomavam, para si, os parcos recursos destinados ao alívio das dores causadas pelas injustiças e violências, ampliou-se a compreensão do seu tamanho nessa arena.

Da menina que aprendeu as lições à mulher que com elas se comprometeu, concretizou-se a ideia de que nem ela, nem a sua descendência protagonizarão as mudanças que desejam, quando estas vierem serão trazidas pelas mãos das vítimas das diversas violências, que sem esquecerem das legítimas pautas identitárias, unir-se-ão contra a acumulação vergonhosa das riquezas, que as mantém prisioneiras.  

Da menina à mulher… o mesmo sonho… o sonho de ser livre!