Somos frutos de estupro. A mulher, em cujo corpo fomos gestadas, foi diariamente violentada pelo homem com quem casou.
Presumo que ao descobrir a gravidez pensou ver os constantes ataques de seu marido diminuir. Entretanto, o ódio que ele parecia sentir por ela multiplicou. Agora seriam mais seres para ele desprezar.
À medida que a barriga crescia, aumentavam os castigos. Quero crer que apenas por não conversarem, eles não se entenderam em relação a isso. Sou capaz de apostar que um desejava matar e ela pedia aos céus para morrermos. Se algoz e vítima tivessem combinado esse crime, quanto sofrimento teriam evitado!
Como não fizeram, ela pariu duas meninas em casa, sozinha. Não está na minha memória, mas imagino-a inconformada com aquilo. Gosto de pensar que ela estava desesperada por não poder atender às nossas necessidades. Essa é a única cena em que me sinto amada. Ainda me pego agarrando-me a ela para me lembrar que sou uma pessoa.
Nenhum pedido de socorro da minha mãe foi atendido. Ela estava só e sem nenhuma esperança de ser alvo da compaixão de alguém, inclusive do marido, por isso vejo-a antecipando no pensamento a cena de horrores que seria protagonizada por ele ao ver as duas recém nascidas.
Suponho que depois do nascimento das indesejadas crianças a violência tenha aumentado consideravelmente, até que ela não resistiu. O assassino foi embora deixando para trás a defunta e duas meninas de quatro meses trancadas no casebre para onde foi morar após o casamento.
Foram tantas horas de choro ininterrupto que alguém resolveu saber o que estava acontecendo no interior daquela casa. Creio ter sido assustadora a cena encontrada por essa pessoa. Chamada a força policial, a defunta ganhou uma cova rasa e as crianças foram entregues ao Estado. Não vou tecer comentários sobre os abrigos. Se deseja conhecê-los, vá até eles.
Ah! Como sei dessa parte das nossas vidas?! Ela foi jogada nas nossas faces inúmeras vezes, sempre apimentada pelo ódio que parecemos despertar nas pessoas. – Vocês não prestam! Seu pai fez muito bem em abandoná-las! Vocês são responsáveis pela morte da sua mãe! Deviam ter morrido com ela. Devo confessar que concordo com a última afirmação. Se isso tivesse ocorrido eu não precisaria levar o peso da culpa de ser a razão da tortura diária e da morte da minha mãe e; de ser o lixo social que tanto lhe incomoda.
Nunca fomos adotadas. Devo dizer que não fomos crianças bonitas. Mas quando completamos onze anos apareceu no abrigo onde estávamos um tio-avô paterno e sua esposa. Durante algum tempo tornaram-se uma espécie de padrinhos. Visitavam-nos com frequência e sempre buscavam atender às nossas necessidades básicas.
Aos treze anos finalmente um casal nos perguntou se gostaríamos de morar com eles. Ficamos encantadas, mas os tios que nunca mostraram interesse de nos levar para sua casa, foram contra de nos entregarem a uma família homoafetiva. Assim, pediram a nossa guarda provisória. Passamos a morar com eles.
Os dias se passavam e uma família parecia em formação. Todavia, o afastamento da tia em razão da doença de uma parenta mudou o rumo das coisas. No mesmo dia em que ela viajou, o tio que deveria nos proteger, agarrou com força minha irmã e tentou estuprá-la. Com uma faca na mão, apliquei vários golpes em suas costas, até que ele perdeu as forças e pudemos fugir.
Não tínhamos para onde ir e passamos a morar nas ruas. Na rua tudo é possível. Lá você pode construir relações de amizade, participar de grupos que lhe darão relativa proteção e, no início, sente-se dona de uma liberdade infinita. Todavia, as ruas cobram de você muita coragem. Bravura para enfrentar reações de desprezo; atrevimento ante as demonstrações de nojo e destemor diante de todas as formas de violência. Tudo isso leva-nos à convicção de que não deveríamos ter nascido e passamos a buscar incansavelmente a morte. Nossa procura não é solitária, somos milhares de meninas e meninos para quem a vida é um terrível castigo.
Não tenha pena de mim, esse sentimento é inútil. Não me ofereça salvação, eu já não quero ser salva. Mas, faço-lhe um único pedido: de hoje em diante, cada vez que fizer seu discurso de ‘proteção da vida’, obrigue-se a nos escutar e nós lhe diremos que suas palavras são tão vazias de amor e justiça quanto são as nossas vidas. Lembre-se, nós fomos obrigadas a nos desumanizar, você não tem razão para isso.